Humberto Campana: “Assim como o tempo, criar arte também cura”
Após a morte de Fernando Campana, designer comanda projetos inéditos pensados com o irmão — incluindo um complexo de arquitetura no interior de SP
Na região da Vila-Anglo Brasileira, Zona Oeste da capital, Humberto Campana, 70, comanda a equipe de dezesseis funcionários e planeja uma série de projetos pensados nos últimos anos com o irmão Fernando, morto em novembro do ano passado. Cercado por muitas plantas e parte do acervo da dupla, o designer prepara uma exposição inédita prevista para estrear em Nova York e um parque de design que será instalado em um terreno de 50 hectares em Brotas, cidade a 250 quilômetros da capital, onde os irmãos nasceram. Para entregar tudo a tempo de celebrar os quarenta anos do Estúdio Campana, em 2024, Humberto tem passado a maior parte dos dias em seu espaço criativo, onde muitos dos móveis e da decoração refletem lembranças e referências da infância vivida ao lado do irmão.
Como foi a mudança para seu novo estúdio?
Nós nos mudamos há um ano, em março do ano passado. Era uma antiga oficina de carros e tudo foi reformado por mim e pelo Fernando para criar um espaço com muita luz. Priorizei a leveza e a transparência. Era tudo muito fechado e comecei abrindo o telhado, o 2º andar agora tem um pátio com jardim de inverno cheio de plantas, embaixo coloquei o showroom com um jardim só de cactos porque não quero gastar água — tenho essa preocupação com a sustentabilidade. Tinha um andaime gigante no local, que fez parte da construção, e comprei para transformá-lo em jardim vertical. Planta traz harmonia e bem-estar e meu estúdio é como um templo. Levo muito a sério o que considero minha missão: fazer coisas para dar prazer às pessoas, coisas belas para cuidarmos da alma.
É verdade que a biblioteca é toda coberta por papéis de chocolate?
Esse era um espaço que não tinha tanta luz e eu sempre fui fascinado por papel de bombom. Geralmente os ovos de Páscoa ou qualquer marca de chocolate usam esse material dourado, então remete a essa memória de infância. Além de refletir muita luz, a cor me conecta com a espiritualidade, é um tom que as igrejas barrocas brasileiras usavam muito. Mas meu lugar favorito fica perto do jardim, em um sofá igual a uma cama, onde fico sentado com minha cachorra. Fico muito por aqui pela vista do pôr do sol e dá para enxergar todo o estúdio.
Você passa mais tempo no estúdio ou em casa hoje em dia?
No estúdio, porque é onde sinto que está a minha família. Desde que meu irmão foi embora, acho que aqui é onde tenho mais conforto, com meus colaboradores. Me sinto muito apoiado e seguro. Em casa eu até gosto, mas fico sozinho e vêm as lembranças. Prefiro preencher o tempo.
Como tem sido sua rotina sem a presença do Fernando?
O tempo cura e criar arte também. Busquei propósito na criação. Hoje estou envolvido em muitos projetos: tem um sítio em Brotas, o salão do móvel, uma exposição que estou preparando para o ano que vem para celebrar quarenta anos do Estúdio Campana. Então estou concentrado em várias novidades que têm me ajudado e fazem com que eu me sinta criativo. Fico feliz de estar reagindo e não ter me deixado levar pela tristeza e pelo baixo-astral. Uma perda também pode te dar força. Eu tinha medo, quando acontecesse isso, de cair. Mas, pelo contrário: estou reagindo e contente comigo mesmo por estar suportando com dignidade.
Como será a próxima exposição?
Será em Nova York, na galeria Friedman Benda, e está prevista para o segundo semestre do ano que vem, só com trabalhos inéditos.
Você ainda viaja muito a trabalho?
Eu já viajei muito, muito, muito. Mas agora só quero tranquilidade, tenho ido muito para o interior. Eu e Fernando iniciamos um projeto após herdar um pedaço de terra em Brotas e vou transformar aquilo em um parque de design, arquitetura e botânica. Estou trabalhando com um biólogo da USP porque uma parte será destinada à restauração da natureza e à educação ambiental.
Agora meu maior prazer não é mais ir para o exterior, mas viajar pelo Brasil, voltar para as minhas raízes. Isso me preenche muito mais e vejo meu futuro nisso. A vida já me deu tanta coisa, agora é o momento de dar de volta à comunidade.
Qual a previsão de abertura do parque?
Também será no ano que vem para celebrar os quarenta anos. Estou construindo pavilhões com plantas, tem um de bambu, outro com mandacaru, com agaves, com palha, só materiais locais. Todo o mobiliário está sendo feito com produtos e pessoas da região. Teremos uma escola de marcenaria por lá e algumas peças e protótipos vão ficar expostos no meio do parque. São 50 hectares, metade destinada a um projeto de agrofloresta, e faremos um refeitório com comidas produzidas lá mesmo.
“Fico feliz de estar reagindo e não ter me deixado levar pela tristeza e pelo baixo-astral. Uma perda também pode te dar força. Eu tinha medo de cair”
Plantamos 20 000 mudas de árvores nativas até agora e já tinha um resto de cerrado e Mata Atlântica porque meu pai era agrônomo, sempre preservava o que podia. Vejo como um local de contemplação, quero que seja um lugar onde as pessoas entrem caladas e saiam mudas (risos). Porém curadas, depois de ter contato com os cheiros e perfumes de plantas, o convite para pisar na terra, na areia, na água. Uma experiência quase holística misturada com arte e educação.
Qual é o maior desafio nesse projeto?
Eu quero colocá-lo em pé mais do que tudo, mas preciso encontrar pessoas que possam patrociná-lo porque até agora só eu e Fernando investimos e fomos mantendo. A longo prazo, quando eu tiver ido embora, gostaria que isso já estivesse seguro e funcionando para as pessoas da região, porque vejo que falta cultura no interior de São Paulo. Não tem museus, por exemplo. É importante implantar um centro cultural.
Ao completar 60 anos, você passou por um processo de desapego. De que forma isso transformou sua vida?
A mudança é muito grande ao chegar nessa idade. Minha maior preocupação passou a ser criar e não envelhecer criativamente. Lógico que tenho um acervo muito grande de peças aqui e em Brotas, onde também quero fazer um museu. É legal exercitar essa vontade de viver com menos, mas se manter criativo. Moro em uma casa pequena com poucos móveis e hoje vejo que não preciso de muita coisa. A minha casa é minha cabeça. Se estou cheio de ideias, não preciso de muito mais.
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de abril de 2023, edição nº 2838