Guel Arraes lança adaptação de ‘Grande Sertão’, maior projeto de sua carreira
Diretor também se prepara para a estreia de ‘O Auto da Compadecida 2’, em um ano que promete ser dos mais importantes de sua trajetória
A expressão serena está estampada no rosto de Guel Arraes. Com ar leve e sorriso no rosto, o diretor passa a nítida sensação de missão cumprida. Depois de cinco anos envolvido no maior e mais desafiador projeto de sua carreira — levar a obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, datada de 1956, para a telona —, Guel sabe que fez o seu melhor.
“Consegui realizar muito do que eu queria”, afirma, feliz. “Com Grande Sertão, cheguei a um lugar aonde eu nunca tinha ido. De abrangência e mergulho em uma obra tão grande. Usei todos os meus recursos, tudo o que sei fazer está ali, toda a minha bagagem, estou tranquilo. Fiz o que pude e está entregue.”
O filme foi exibido pela primeira vez na 27ª edição do Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, em novembro de 2023, e já arrematou o prêmio de melhor direção para Guel na mostra competitiva Critic’s Picks.
Chega agora a São Paulo, com pré-estreia marcada para a próxima terça-feira (4), e dois dias depois no Brasil todo. Produzido pela Paranoïd Filmes, com coprodução da Globo Filmes, o longa será exibido na televisão daqui a um ano. “Quanto mais pessoas assistirem e conhecerem a literatura de Guimarães, melhor”, comemora.
Nascido em Recife em 1953, o diretor comemora 50 anos de uma trajetória profissional brilhante, entre o cinema e a televisão (veja a retrospectiva ao fim do texto). Filho do político Miguel Arraes (ex-prefeito de Recife) e de Célia de Souza Leão, que morreu quando ele tinha apenas 7 anos, Guel e os irmãos foram criados com a ajuda de tias e da segunda mulher de seu pai, Madalena.
Morou em Argel (norte da África) com o pai, ainda estudante, e depois foi estudar cinema em Paris, a partir de 1974. “Aprendi praticando, basicamente nos sete anos em que trabalhei no Comité du Film Ethnographique, dirigido por Jean Rouch, e em algumas experiências soltas e amadoras.”
Aos 19, 20 anos, já começava a trilhar seu caminho profissional. Em 1980, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde teve uma sequência admirável de trabalhos. Como nos últimos tempos dirigiu núcleos de produção na Globo, Guel estava há doze anos sem ir para um set de gravação e voltou com força total.
Filmar Grande Sertão sempre esteve no seu imaginário, mas, segundo ele, faltava coragem. “Acho que nove em dez cineastas gostariam”, diverte-se. “Grande Sertão: Veredas sempre foi o livro de que mais gostei. É uma obra sobre a civilização brasileira. Meu livro preferido”, destaca. No entanto, era um projeto ambicioso e precisava ser no momento certo.
Quando ele estava deixando o cargo na Globo e querendo voltar para a criação, o cineasta Heitor Dhalia, também pernambucano, sócio da Paranoïd, comentou que estava negociando os direitos do livro e que poderia passar para ele. Imediatamente, Guel procurou o diretor e roteirista gaúcho Jorge Furtado. “Meu parceiraço da vida, trinta anos trabalhando juntos”, conta. “Jorge é animado e corajoso e logo disse: vamos fazer!”
Furtado está igualmente satisfeito com o resultado do filme. “Estou muito feliz! Tem muito Guimarães”, comemora. Ele diz que costuma deixar o livro na mesa e abre aleatoriamente as páginas. “Vou lendo qualquer pedaço: é surpreendentemente atual”, afirma. “O Brasil continua com batalha e com guerra, não termina nunca. Todos estão lutando pela vida.”
Furtado assina o roteiro ao lado de Guel, e Flávia Lacerda assume a direção da segunda unidade e a produção artística. “É o maior romance escrito em língua portuguesa, não há nada igual”, diz. Sobre a amizade com Guel, ele conta que costumam trocar livros e que estão sempre em busca de projetos novos. “Ele me apresentou um monte de coisas da literatura brasileira e eu sugiro para ele obras da literatura pop americana e inglesa, que fazem mais parte da minha formação.”
Aceito o desafio de filmar, começava outro. Como fazer? “Não é um livro que você pega e adapta”, pontua Guel. “Que ideia nova podemos trazer? Eu fico muito agoniado quando vejo, por exemplo, montagens de Hamlet. Já montaram 300 vezes, o que uma nova pode ter que as outras não tinham? O que acrescentar a um monumento?”, questionava-se.
E foi nessa hora que decidiram transpor o filme para a realidade das guerras urbanas vividas nas periferias brasileiras. “Era uma demanda de nós mesmos, um dos grandes problemas brasileiros da nossa civilização atual. Como deixamos isso acontecer?”, questiona Guel.
Existia, porém, a preocupação de não fazer um filme do subgênero favela movie. Em geral, os filmes de guerra urbana têm ou o ponto de vista da comunidade ou o da polícia. Como fazer isso com isenção? Como fazer uma história com outros pontos de vista?, indagavam-se os roteiristas. “Guimarães fez, e fomos sendo guiados por ele”, afirma Guel.
Esse foi o primeiro grande salto para a adaptação. “Guimarães não fez uma visão sociológica, mas filosófica, ética. Todo questionamento dele não é da questão social. Achou um outro ponto de vista”, afirma o diretor. “O que as guerras fazem? Potencializam o que há de bom e de mal. As grandes paixões humanas. Das melhores, a coragem, a fidelidade, o amor. Das piores, a vingança, a covardia, a deslealdade.
Por essa visão, pode ter os dois lados. Talvez o mais importante de tudo tenha sido esse ponto de vista. Conseguir falar da guerra urbana com um ponto de vista diferente. É uma guerra civil, são brasileiros matando brasileiros. É uma obra sobre as grandes questões humanas, sobre a ética; tem um universo coerente, infinito”, acrescenta Guel. “A visão do Guimarães não é maniqueísta.”
Para Guel, o narrador Riobaldo, vivido brilhantemente pelo ator Caio Blat, sem dúvida, é hamletiano. “Ele vai tentando entender o mundo, como nós gostaríamos de entender. Mas o amor é o principal”, destaca. Para diretor, a escolha de Caio era “incontornável”, após ver o trabalho que o ator fez na peça de Bia Lessa, adaptada da obra. “Tinha que ser ele”, diz. “O Guel é o diretor mais exigente e mais detalhista, o que mais ensaia, o que eu acho um privilégio e um aprendizado gigante”, responde Caio.
Diadorim, outra personagem central na trama, é vivida pela filha de Guel, Luisa Arraes. “Uma personagem muito difícil, ela inventou”, afirma o pai e diretor. “Foi um amadurecimento da nossa relação. Sempre fomos muito próximos como pai e filha. Quando ela nasceu, foi quando comecei a escrever mesmo. Trabalhava com ela ao lado, no carrinho. Agora, neste primeiro trabalho juntos, a gente estava muito maduro. Ensaiamos a vida toda para isso.”
Luisa retribui. “Foi muito bonito e emocionante. O maior desafio da vida dele e da minha também. E fizemos juntos. Tem sentimentos muito grandes em Grande Sertão e falamos ali de assuntos que não temos coragem de falar na vida real; falamos através da arte, e isso mudou nossa vida para sempre.”
Carreira prolífica de Guel Arraes*
1980
Volta ao Brasil após morar na Argélia e na França. Conhece o ator Tarcísio Meira (1935-2021) durante as filmagens de O Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto, em que trabalhou como assistente de câmera
1981
É apresentado ao diretor Paulo Ubiratan (1947-1998), por intermédio de Meira, e recebe o convite para trabalhar na Rede Globo. Começa como codiretor da novela Jogo da Vida, de Silvio de Abreu, ao lado de Roberto Talma (1949-2015) e Jorge Fernando (1955-2019)
1983-1984
Dirige Guerra dos Sexos e Vereda Tropical ao lado de Jorge Fernando
1985
Faz a direção-geral da série Armação Ilimitada, grande sucesso da TV brasileira
1988
É um dos responsáveis pela criação e implementação do programa TV Pirata, que renovou o humor da Globo
1991
Dirige Dóris para Maiores
1992
Lidera a criação do programa Casseta & Planeta
1995
Cria a série A Comédia da Vida Privada, com adaptações de textos de Luis Fernando Verissimo, produção que refletiu seu modelo de trabalho televisivo
2000
Dirige O Auto da Compadecida e coordena o projeto Brava Gente, que apresentou programas inspirados em contos ou peças curtas, adaptados e dirigidos por diversos autores e diretores
2001
Dirige Caramuru: A Invenção do Brasil e encabeça a criação de Os Normais e a segunda versão de A Grande Família
2003
Dirige a ex-esposa Virgínia Cavendish em Lisbela e o Prisioneiro
2008
Escreve e dirige Romance, estrelado por Wagner Moura e Letícia Sabatella
2010
Dirige O Bem-Amado e escreve Papai Noel Existe
2011
Assina a direção de núcleo do programa Esquenta!, comandado por Regina Casé
2024
Lança Grande Sertão e O Auto da Compadecida 2
*Com reportagem de Mattheus Goto.
Publicado em VEJA São Paulo de 31 de maio de 2024, edição nº 2895