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Rainha da ZL: Um rolê com Gloria Groove pela Vila Formosa, onde ainda mora

Vencedora do "Show dos Famosos" e com milhões de views em seus clipes, a cantora revela lugares e resgata memórias do bairro do coração

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 22h36 - Publicado em 14 jan 2022, 06h00
Foto de Gloria Groove descaracterizada nas ruas da Zona Leste, onde cresceu e ainda vive. Ela usa um conjunto de calça e casaco colorido e estampado.
Daniel Garcia, no escadão do bairro: vitória na TV aberta cantando aos domingos. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Mesmo sem as perucas e maquiagens que usa nas apresentações, Gloria Groove faz parar o comércio da Vila Formosa, na Zona Leste. No bairro onde nasceu, se descobriu drag queen e ainda mora, os fãs aparecem a todo momento para uma selfie, um abraço ou elogiar suas performances no Show dos Famosos, a atração dominical da Globo que ela venceu em dezembro. A conexão com a “ZL” está na raiz do sucesso. Gloria, 27 anos, personalidade artística de Daniel Garcia, voltou a morar na região em 2017, após uma temporada no centro.

Gloria Groove em praça da Zona Leste.
Na “Praça dos Loko”: medo de frequentar as batalhas de rap. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Montada, em live. (Julia Assis/Divulgação)

Nas ruas e rolês que embalaram sua adolescência, ela achou inspiração para as faixas do álbum Lady Leste, que tem três músicas lançadas com enorme repercussão. Leilão, no ar desde novembro, passa de 20 milhões de visualizações no YouTube. Bonequinha, 50 milhões. Visceral e contagiante, o clipe de A Queda foi visto 85 milhões de vezes. Ao todo, o disco terá treze faixas — a versão completa sai em fevereiro — e mistura hip-hop, R&B, rap, funk e outros ritmos. “O nome tem um significado”, Gloria conta. “‘Lady’ representa aonde quero chegar, porque gosto de várias ladies como a Lady Gaga e a Lady Night (a apresentadora Tatá Werneck). E ‘Leste’ é de onde eu vim.”

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No auge da fama, Gloria mora em um espaçoso sobrado de dois andares no Jardim Têxtil, um tranquilo pedaço da Vila Formosa. Divide o teto com a mãe, a cantora Gina Garcia, 59, que faz os backing vocals da banda Raça Negra desde 1993. Também mora ali o artista plástico Pedro Lopes, 33, companheiro de Daniel faz seis anos. (As pessoas próximas variam a maneira de chamá-lo: Daniel, Gloria, ele, ela…) “Enquanto o Dani trabalha, o Pedro me ajuda a fazer as compras e a organizar a casa. É um ótimo genro”, relata Gina, que arcou sozinha com a criação do filho. “Namorei o pai da Gloria por três meses. Quando disse que estava grávida, ele me contou que era casado e tinha dois filhos”, ela relembra.

Daniel passou a adolescência em uma casa modesta, com o quintal compartilhado entre três vizinhos, a cinco minutos de onde mora atualmente. Ficava em uma subida sinuosa conhecida como “curva da morte” no bairro. Em dois cômodos, viviam ele, a mãe, a tia, um primo, duas primas e eventualmente um tio. “A gente dividia um quarto ao meio usando um guarda-roupa, para meu primo poder morar em um dos lados. Dormi com minha mãe na cama até os 17 anos”, diz a artista.

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Naqueles apertados dormitórios, em devaneios adolescentes, Daniel imaginava a personagem drag queen que gostaria de inventar. Aconteceu, enfim, no final de 2014. O adolescente — que aos 13 anos contara para a mãe sobre a própria homossexualidade — costumava se maquiar para sair à noite. Um dia, se arrumava para ir cantar em uma festa no Hotel Cambridge (vestindo uma calça legging preta de Gina), no centro, quando deu o estalo: “Hoje, vou me chamar de Gloria Groove”. O nome alude à mãe, que também usa “GG” como assinatura artística.

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Os dias não seriam mais os mesmos naquela íngreme conversão da Vila Formosa. A casa se tornou uma espécie de clubinho das drag queens da cidade. “Vinham amigas de todos os bairros, Ipiranga, Moema… Era um lugar seguro para a gente ‘se montar’ antes das baladas e, depois, fazer o nosso ‘after’”, conta. “Na Zona Leste, nunca sofri preconceito por andar na rua como Gloria. No máximo, faziam aquela ‘festa’ quando eu passava em frente ao pagode”, relembra. “No centro, às vezes, era mais tenso. Tinha carro que perseguia, gangue que vinha atrás…”.

Daniel rapidamente se destacou na cena drag porque, ao contrário da maioria, cantava “de verdade” (e não apenas dublava) as músicas. O talento tinha aflorado aos 4 anos, quando andava pela casa cantarolando Hero, de Mariah Carey, após ouvir a mãe ensaiar a música. “Ele não falava nem português, mas cantava em inglês perfeito”, lembra Gina. Trabalhou como dublador durante toda a juventude, para diversos estúdios de destaque (era a voz do Doki, o cachorrinho mascote da Discovery Kids, e de um dos Power Rangers). Quando passou a fazer shows como drag, em 2015, em alguns meses se tornou uma estrela das festas do centro e abria shows para divas estrangeiras. No fim daquele ano, era convidada para participar do programa Amor e Sexo, da Globo. Além de fama, a personagem Gloria Groove deu voz própria a Daniel: somente depois que ela “nasceu”, ele passou a compôr músicas.

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Pose na “curva da morte”, onde fica a casa em que morou. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Foto de uma casa com portão marrom, na Zona Leste.
Casa onde Gloria Groove viveu. (Google/Reprodução)
Foto de Gloria Groove na escola onde estudou.
No Ceret, onde matava aula: “Ficava comendo salgadinho com Coca”. (Alexandre Battibugli/Veja SP)

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Perto da antiga casa, no fim de uma rua sem saída, fica o portão da Escola Estadual Professor José Marques da Cruz. Daniel é saudado com gritos efusivos pelas antigas professoras, que o reconhecem de longe. Teve de mudar para a escola pública depois de repetir o 1º ano (matemática e física…) na particular, perdendo a bolsa de estudos. “Cheguei meio intimidado. Eu era uma gay com a franja da Rihanna, fazia relaxamento e progressiva (nos cabelos)”, diz. “A primeira coisa que me chamou a atenção era que ali você podia fazer o que quisesse, não tinha uma coordenadora no pé, era mais ‘várzea’”, ele conta. “Mas a turma era mais cabeça aberta que na particular. Fiquei amiga de todos. Eu era o diferentão, mas eles entendiam o que eu estava fazendo.”

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Ressabiado com a pouca tutela, Daniel resolveu pegar firme nos estudos e passou direto nos anos do ensino médio. “Era ótimo aluno, principalmente nas áreas de linguagem”, diz a professora Nilda de Oliveira Vilela, de sociologia. “O Daniel foi um grande motivador de talentos na escola. Criamos uma disciplina eletiva chamada ‘show de talentos’ por causa dele. Cantava na formatura, na festa junina”, relembra Nilda. “Fico muito orgulhosa quando você fala ‘Zona Leste’ na televisão”, ela diz ao ex-aluno.

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No tradicional Parque Ceret, no Jardim Anália Franco, vizinho à Vila Formosa, Gloria praticava outra atividade pedagógica indispensável ao ensino médio: matar aula. “A gente ficava embaixo de uma árvore sem fazer nada, só comendo (salgadinho) Fofura e tomando Coca-Cola”, diz a cantora. No caminho, a turma costumava parar no Bazar Irmãos Kido, uma papelaria aberta há 58 anos no bairro (Avenida Doutor Eduardo Cotching, 1922). “Várias gerações da minha família compraram material escolar aqui”, ela conta, abraçada para selfies com as vendedoras. “Temos até cliente que virou bisavô e vem comprar coisas para o bisneto”, completa Cintia Kido, atrás do balcão.

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Popular na escola e à vontade na Zona Leste, Gloria tinha apenas um tabu no bairro. Sentia medo de ir às batalhas de rap da Praça Santo Arsênio, conhecida no pedaço como “Praça dos Loko”. “Eu era um menino afeminado e o ambiente era meio pesado”, conta. Na intimidade, ele improvisava rimas de rap e tinha vontade de participar dos encontros, onde rolam disputas ao microfone. Não demorou para a drag dar a volta por cima. Em 2017, com a carreira decolando e alguns hits na internet, Gloria fez um show-relâmpago que levou cerca de 1 000 pessoas a uma batalha na praça — segundo ela, o maior público de um evento no local. “Fui vestida de body preto cavado e uma jaqueta bomber prateada de astronauta. No começo, sentia as pessoas me olhando, uns malucos fazendo cara feia… Mas foi um sucesso. Tive a sensação de que fazia um retorno triunfal ao lugar”, ela conta. “Precisei sair da Vila Formosa para conquistar a Praça dos Loko.”

Gloria Groove no escadão da Vila Formosa.
No escadão do bairro e na loja “Irmãos Kido” (foto abaixo): 58 anos na vizinhança. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Gloria Groove na loja
(Alexandre Battibugli/Veja SP)

Como se o sonho mudasse de tamanho, Gloria agora tem a ambição de cantar no Itaquerão, outro símbolo da ZL. Em março, vai estrear a Lady Leste Tour no Lollapalooza, no Autódromo de Interlagos. Está confirmada na escalação do Rock in Rio, em setembro, em um palco que receberá Joss Stone, Corinne Bailey Rae e Duda Beat. As apresentações memoráveis no Show dos Famosos têm rendido elogios de peso no showbusiness. “A @gloriagroove merece ser reconhecida como a artista mais relevante e completa da música brasileira. Precisamos começar a reconhecer (…) artistas que se dedicam para elevar o nível do jogo”, postou Evandro Fióti, irmão e empresário do rapper Emicida, em 20 de dezembro. Na véspera, a cantora paulistana tinha feito a mais impactante apresentação do domingão global. Vestiu-se de Marília Mendonça para interpretar Bebi Liguei, hit da jovem sertaneja que morrera dias antes em um acidente aéreo. Além da voz poderosa, Daniel estava visualmente parecidíssimo com Marília. Ao final, jurados como Preta Gil vieram às lágrimas.

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Na manhã seguinte, durante o passeio com a Vejinha pela ZL, Gloria se espantava com a repercussão. “Fiquei em choque. Tinha ido à peça da Claudia Raia (no domingo à noite, o musical Conserto para Dois) e, antes de começar, postei uma foto do Show dos Famosos. Meia hora depois, tinha mais de 15 000 comentários”, ela conta. A maioria seguia o tom expressado por Fióti: destacava o nível da artista.

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Gloria Groove na escola onde estudou na ZL.
Na escola estadual: “Ele fez surgirem outros talentos”, diz professora. (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Gloria Groove tira fotos com professoras da infância.
(Alexandre Battibugli/Veja SP)

Fã de disco e soul music dos anos 70 (por influência da mãe), Gloria mira nas grandes divas internacionais e não se deslumbra com os elogios. “Fico arrepiada, sério. Mas não me deixo levar. Não acho que eu já seja isso tudo que dizem, mas é o que estou buscando”, avalia. De um lado, é mesmo perfeccionista e ambiciosa. Nas gravações, sua equipe já passa de 100 pessoas — gente para cuidar de roupa, cabelo, redes sociais, coreografia… Não à toa, A Queda foi o clipe pop de um artista-solo mais visto e “curtido” (em redes sociais) do Brasil em 2021. Por outro lado, Gloria Groove parece ter sempre o pé firme no chão da ZL. “Meu bairro é a minha raiz, é onde mora o meu coração”, explica. “Faz muito bem ir ao mesmo supermercado da adolescência, sabe?”

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Publicado em VEJA São Paulo de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772

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