“Me sentia culpado de mostrar a Cidade de Deus tão violenta”, diz Fernando Meirelles
Em passagem pelo Festival Lumière, em Lyon, na França, diretor revê longa pela primeira vez em 22 anos, enquanto prepara lançamentos nacionais e internacionais
Mais de 250 pessoas lotaram a sala de exibição do Instituto Lumière, em Lyon, na França, para assistir a um filme que há 22 anos arrebata brasileiros e estrangeiros: Cidade de Deus.
“Não sei por que o filme fez tanto sucesso”, afirma o diretor Fernando Meirelles, que conversou com Vejinha na cidade conhecida como “berço do cinema”.
Com uma programação que incluiu nomes como Giuseppe Tornatore e Justine Triet, o Festival Lumière exibiu entre os dias 17 e 19 de outubro o longa brasileiro codirigido por Kátia Lund.
A obra relata o crime organizado na favela carioca e foi um fenômeno mundial na época de seu lançamento — e recentemente foi revisitado na série Cidade de Deus: a Luta Não Para, dirigida por Aly Muritiba e disponível na Max desde agosto.
A restauração do longa de 2002, adaptação do livro homônimo de Paulo Lins, é um dos projetos que, ao lado de produções nacionais e internacionais, promete ocupar os próximos anos de Meirelles.
Outro é Corrida dos Bichos, produzido pela Prime Video, que retrata um Rio de Janeiro distópico e conta com a participação de Anitta, Isis Valverde e Rodrigo Santoro.
Além do sucesso como diretor, celebrado também por Dois Papas (2019) e O Jardineiro Fiel (2005), Meirelles vota na categoria de melhor filme internacional do Oscar e vê boas chances para o Brasil na próxima edição do prêmio.
O que achou do convite para exibir Cidade de Deus no Festival Lumière?
Achei que o festival, que acontece no galpão onde os irmãos Lumière trabalhavam, no berço do cinema, seria uma boa oportunidade para rever o filme, que não via há 22 anos. Estou planejando uma restauração e tinha pensado em mudar algumas coisas na montagem, mas reassistindo vi que o filme está muito redondo, não tem o que mudar.
Por que ficou tanto tempo sem assistir ao filme?
Em geral não assisto às coisas que faço. Parece que o que passou, passou, e a vida é para a frente. Ou, às vezes, tenho medo de assistir e não gostar.
Olhando para trás, tem algo que mudaria no longa?
Se fosse fazer o filme hoje, colocaria algum personagem que não está no livro, um morador da comunidade que vive normalmente. Porque quem vê o filme tem a impressão de que na Cidade de Deus só tem bandido, o que não é verdade. Às vezes me sentia culpado de mostrar uma imagem tão violenta, apesar de ser baseada no livro escrito por alguém de lá. Por causa disso, minha produtora, a O2 Filmes, fez quatro temporadas da série Cidade dos Homens, na Globo. É uma comédia sobre o dia a dia de dois garotos na favela, não tem crime, não tem tiro. De certa forma, ela me redimiu para mim mesmo. Neste ano a O2 lançou também a série Cidade de Deus, que continua a história do filme, com os mesmos personagens. E aí a gente já encontra a comunidade do outro jeito, tem movimento negro, tem movimento cultural. É a mesma história, mas vista agora do ponto de vista dos moradores, não dos bandidos. Então essa série é, de certa forma, outra redenção.
Um de seus projetos que têm atraído a atenção é Corrida dos Bichos. O que o público pode esperar do filme?
É um projeto do Ernesto Solis que estou codirigindo, também ao lado de Rodrigo Pesavento. A história de um Rio de Janeiro distópico, onde o jogo do bicho virou uma corrida, uma fábula sobre o futuro e sobre a desigualdade social. Um filme muito interessante, e a Amazon investiu bastante nele. É muito diferente do que a gente costuma ver no Brasil.
“Precisamos restabelecer a confiança em filmes brasileiros, tem muita coisa boa sendo feita e pouca gente vendo”
Você acha que existe uma lacuna de filmes distópicos no Brasil?
Não tem muito esse tipo de filme no cinema brasileiro porque precisa de muito dinheiro. A Amazon acreditou e apostou bastante em Corrida dos Bichos, mas ainda não se compara aos padrões internacionais.
E para o futuro? Pretende continuar produzindo e dirigindo?
Em 2020, na pandemia, resolvi abandonar minha carreira de produtor. Me arrependo de ter ficado tanto tempo produzindo, porque não sou um bom produtor e eu gosto de dirigir. No ano que vem dirijo dois projetos, um na França e outro nos Estados Unidos e no México. E estou fazendo um projeto de série no Brasil. Então, agora minha vida vai ser assim: um ano de produções nacionais, um ano de produções internacionais.
É importante ter um pouco dos dois?
Gosto de filmar em português, com atores brasileiros, contando histórias brasileiras. Mas, por outro lado, os filmes internacionais chegam mais longe e posso trabalhar com orçamentos maiores. Então, se eu intercalar, posso ter um pouquinho dos dois mundos.
Como você avalia o impacto do streaming na produção brasileira?
O bom é que agora tem muito mais gente assistindo a filmes. E para o produtor interessa também, porque o volume de produção que ele exige é muito maior. O audiovisual é um dos setores que mais cresceram no Brasil nos últimos vinte anos e o streaming teve uma grande contribuição nisso. Mas, quando você produz para ele, é muito mais controlado, porque quem está colocando um monte de dinheiro no seu projeto precisa ter um resultado. Em geral, os produtores são muito bons, mas é diferente. Quando penso em como vou montar, já penso em como o streaming vai olhar essa montagem, sem querer, já vou me adaptando.
Você acredita que a cota de tela para filmes nacionais, reimplementada neste ano, é uma política eficaz?
Acho fundamental. Se não tiver a cota de tela, o cinema brasileiro desaparece, porque a gente está competindo com um monstro. São produções de milhões de dólares, com muitos recursos para promover. Como é que um filme independente brasileiro consegue aparecer nesse mundo? E é importante a gente ver nossas histórias representadas, o cinema é um espelho que reflete a gente, é o que faz a gente se pensar. Agora precisamos restabelecer a confiança em filmes brasileiros, tem muita coisa boa sendo feita e pouca gente vendo.
Você tem experiência no Oscar, como indicado e também como membro da Academia. A que você atribui a falta de filmes brasileiros na premiação?
Acho que a gente tem um problema na seleção dos filmes que vão para o Oscar. O júri escolhe os filmes que são bons, mas eles não olham a chance que o filme tem de chegar lá. O filme que vai para o Oscar tem que ter uma distribuidora americana e verba para uma campanha de promoção. Você só ganha Oscar se tiver dinheiro. Agora, neste ano o filme selecionado, do Walter Salles (Ainda Estou Aqui), é uma escolha perfeita, porque tem os dois. Não assisti ao filme ainda, mas só ouço falar bem.
Publicado em VEJA São Paulo de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916