Denise Fraga: “Quem mora na rua também é nosso vizinho”
Prestes a voltar ao Teatro Tuca, atriz reflete sobre a desigualdade social em São Paulo e o comportamento da plateia na era das redes sociais
Após uma apoteótica apresentação de uma única noite no Theatro Municipal, no dia 1º, Denise Fraga, 58, vai estrelar a nova temporada do monólogo Eu de Você. Com apresentações de 18 de agosto a 10 de dezembro no Teatro Tuca, a atriz carioca traz ao palco histórias reais transformadas em literatura, música, imagens e poesia — acompanhada por uma banda de três mulheres.
Além de produzir um documentário sobre a peça (previsto para 2024 e produzido pelo Café Royal), Denise prepara um longa-metragem gravado na Europa sobre eutanásia. Nesta entrevista, fala dos efeitos da vida digital no público, do trabalho ao lado do marido (o cineasta Luiz Villaça) e das rodas de samba que organiza para descontrair.
Como é a experiência de se apresentar no Theatro Municipal?
Um acontecimento que quase me matou de adrenalina. Faríamos em abril de 2020. Chorei quando tudo fechou (pela pandemia), não acreditava que iria perder essa oportunidade. Depois filmamos um ensaio e ampliamos a ideia para um documentário. Luiz (Villaça, marido da atriz e diretor da peça ao lado de Zé Maria) convidou sete diretores e sete câmeras ao mesmo tempo, teatro cheio. Acordei sabendo que seria um dia inesquecível.
O Municipal segue na luta para atrair o paulistano aos espetáculos, principalmente com a onda de violência no Centro. Você é uma frequentadora?
Fazia tempo que eu não ia ao Municipal, mas vou bastante à Sala São Paulo. É difícil ver a situação da cidade, com tanta gente morando na rua. Mas é importante ver e entender onde vivemos e o absurdo desse abandono. Quando falam que não dá para andar por ali… Dá, sim. São pessoas que moram na rua. Elas também são nossos vizinhos, em um país com tamanha diferença social. Confundir quem mora na rua com quem vai te fazer sofrer uma violência é algo que fica na nossa cabeça para tornar essas pessoas indesejáveis. Na verdade, elas precisam de algum projeto solidário e de cuidado.
Como é o processo de trabalhar ao lado do marido?
Fazemos isso há muito tempo. Achamos um lugar em que nos respeitamos nas nossas diferenças. O segredo, se é que ele existe, porque não tem receita, é entender que somos complementares. A gente discute, não concorda sempre. A direção de Luiz nessa peça é incrível, mas tem muitas histórias minhas. Reunimos mais de trezentas histórias. As que ficaram são as mais comuns, com menos especificidades, que dizem respeito a todos nós. E, como temos a participação de uma banda, me sinto uma cantora (risos). Mas sou só uma atriz com coragem de cantar.
Em entrevista recente, você cita uma dificuldade do público atual em captar ironias e metáforas. De que maneira tem notado isso?
Como o humor está sempre presente no meu trabalho, a resposta da plateia é muito sonora e isso deixa o meu ouvido treinado. Gosto de divertir e, ao mesmo tempo, fazer a pessoa pensar. Sinto que há um empobrecimento desse código, da ironia, após a rapidez que a vida digital trouxe. Em casa, as pilhas de livro que quero ler crescem, e quando vejo estou de novo no WhatsApp e me dá dó porque, ai, meu Deus, me deixem ler! (risos) Se não cuidar, a gente fica muito rasteiro e passa o dia nadando na superfície, sem mergulhar. Estamos ficando com nossa capacidade de imaginar cada vez mais comprometida, porque logo (os aparelhos digitais) nos dão imagens prontas.
Você chega a notar pessoas olhando o celular durante a peça?
Sempre tem. Luiz me contou que viu uma coisa muito louca na temporada do Teatro Sérgio Cardoso. Uma mulher estava aos prantos em um momento forte da peça, chorando. Pegou no celular, deu uma passada no Instagram, guardou e em seguida já estava rindo da próxima piada. Hoje já nem ligo quando toca o celular. Tem gente que filma e até acho legal ver um novo ângulo.
Você já declarou que a arte pode ser uma tábua de salvação para momentos de sofrimento. Quais são seus sofrimentos atuais?
A decadência física da minha mãe. Perceber que estamos em uma curva da vida onde precisamos cuidar dos nossos pais e entender mais esse ciclo. E que vai chegar a nossa hora. A gente costuma viver como se não fosse morrer. Acabei de fazer um filme em Portugal, um manifesto pela eutanásia, que me fez pensar muito nesse tema.
E como faz para viver sem se esquecer dessa finitude?
Acabamos de perder a Aracy (Balabanian), com quem trabalhei pouco, mas parecia ser alguém que entendia a leveza de estar por aqui. É isso o que a gente precisa, talvez. Sem adiamentos. Minha promessa de anonovo, que eu deveria cumprir mais, é colocar o prazer na agenda.
E quais são os seus prazeres?
Cantar e dançar. Faço uma roda de samba com amigos uma vez por mês. Botei dia, hora e local. E ela acontece, é um compromisso comigo mesma. Além disso, gosto de pisar na grama, pedalar, caminhar.
Você é uma carioca vivendo em São Paulo desde os anos 1990. Por que acabou ficando na cidade?
Esta é uma cidade que você vai descobrindo nos meandros e fui bem acolhida. Ela acontece nos caminhos, não de cara. E é de uma riqueza enorme! Várias pessoas em Vitória me falaram que visitam São Paulo só para ir ao teatro, porque lá não tem tanto.
“Uma mulher estava aos prantos na peça. Pegou o celular, passou pelo Instagram e em seguida ela ria”
A novela Bambolê (1987), que marcou sua estreia na TV, acabou de entrar no catálogo do Globoplay. Qual é sua lembrança mais marcante daquela época?
Nossa, eu tinha 22 anos. Foi uma surpresa ter sido chamada. Eu saí da escola em 1985, tinha só dois anos de formada. Quando você começa a fazer televisão, sua família reconhece e fala “sim, ela é atriz!”. Antes era “ah, a Denise tá lá com o teatro dela…” (risos). A televisão cria essa outra voz.
As novelas perderam essa voz e impacto com os streamings?
Tudo perdeu força e o mundo ficou múltiplo. Hoje não temos muito de nada. A unanimidade talvez esteja em extinção, porque nada mais vai ser único. Tem público para tudo e as coisas estão pulverizadas.
Você tem planos de voltar a trabalhar em novelas após essa temporada?
Tem essa coisa que parece que não faço mais novela, mas eu adoro. É que precisa dar certo, porque às vezes a televisão não comporta atores que fazem teatro. Um Lugar ao Sol (2021) foi uma guerrilha para dar certo. Você tem que estar livre e essa deu certinho porque eu soube com antecedência. Na verdade, o que eu adoro fazer é primeiro uma boa história e, em segundo lugar, um bom personagem.
Publicado em VEJA São Paulo de 16 de agosto de 2023, edição nº 2854