Close aos 60: como é a vida na terceira idade para artistas LGBTQIAPN+
Em relatos pessoais, personalidades como Nany People e Zélia Duncan refletem sobre o envelhecer, tema da 29ª Parada do Orgulho LGBT+

A Avenida Paulista será mais uma vez tomada por cores, corpos e bandeiras no próximo domingo (22), com a 29ª Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo. Com o tema Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro, a edição deste ano presta uma homenagem às pessoas da comunidade com mais de 60 anos e propõe discussões sobre longevidade, cuidado e visibilidade na terceira idade LGBTQIAPN+.
“Ainda sofremos com a falta de representatividade e uma mulher lésbica ou trans, por exemplo, não tem muitos exemplos para se imaginar na terceira idade”, reflete o jornalista e roteirista Yuri Alves Fernandes, criador do documentário LGBT+60. “Falta convívio com essas pessoas e geramos um medo de envelhecer porque não vemos como é.”
“A juventude é uma moeda de troca muito soberana dentro dessa comunidade, então ser velho pode ter um significado cruel”, acrescenta Luís Baron, conselheiro da ONG EternamenteSOU.
Até 2050, a projeção do IBGE indica que idosos serão quase 30% da população brasileira. “Então não há mais como não falar sobre envelhecimento.” “Chegou a hora de contar essas histórias para ter referências, inclusive estéticas, de como é uma pessoa LGBT de 70 anos ou um casal que está junto há mais de trinta”, completa André Fischer, diretor de comunicação da APOLGBT-SP, responsável pela organização da parada.
Na avenida, o evento é para todas as idades, com shows de Pepita, Banda Uó e Pedro Sampaio, além de DJs das festas Desculpa Qualquer Coisa, Tersapata e V de Viadão.
A abertura será conduzida por Silvetty Montilla e Helena Black em um trio especial dedicado a veteranos da comunidade e, no trio da Amstel, a atriz e performer Antara Gold será a mestre de cerimônias.
O trajeto será o mesmo adotado em 2024, com o desfile dos trios concentrado no lado ímpar da Paulista e o público orientado a seguir pelas ruas Haddock Lobo e Bela Cintra.
A programação também será transmitida ao vivo no YouTube do DiaTV. Tem mais: durante todo o mês, a cidade acolhe uma série de atividades culturais paralelas, com exposições, espetáculos e festas como a Castro Festival, que terá apresentações de Ludmilla e Ney Matogrosso (confira um roteiro completo).
Casada com os palcos

“Quanta coisa eu fiz dos 50 aos 60 anos! Viajando o Brasil com cinco solos, entrei na TV Globo com 53 anos, fiz turnês mundiais e não abri mão do meu propósito. Essa é a década em que todo mundo tem uma crise e as baixas, você vai perdendo amigos, amores, cachorros… Ciclos se fecham e recomeçam. Tudo isso de maneira muito rápida e divertida porque não contabilizo débito. E as mudanças acontecem por bem ou por mal.

Cheguei à conclusão de que 2025 é um ano cabalístico, porque são 60 anos de idade, cinquenta de palco, quarenta de São Paulo e trinta de TV. Para a criança que entrou no teatro com 10 anos, acho que fiz o dever de casa. Conquistei o meu nome em 2018 (ano em que o STF decidiu que pessoas transexuais podem alterar nome e gênero no registro civil). Depois é que fui descobrir a influência da Parada nessas mudanças.

O Brasil vai ter uma população cada vez maior de pessoas maduras em um país que só elucubra sobre a juventude… Até os 25, porque daí pra frente já está tombada, né? E o pessoal fala que aos 40 já é ‘maricona’. Se for assim, eu sou o quê? O retorno da múmia (risos). No meu novo livro também falo dos meus amores. Estou muito bem servida, mas casada mesmo só com o teatro. E adoro novinho — eu, Susana Vieira e Madonna. É mais forte que eu.”
Nany People, 60, atriz e humorista, está em cartaz com a peça Como Salvar Um Casamento e estrela, em julho, uma única apresentação do espetáculo Ser Mulher Não É pra Qualquer Um, baseado em sua nova biografia, de mesmo título
Guarda-costas de si mesmo

“Fiquei morando na Península de Maraú (no sul da Bahia) por sete anos e a minha vida era ficar pelado na praia fumando maconha (risos). Foi ali que resolvi escutar as músicas que tinha ouvido durante toda a minha vida. Nasci em 1964 e, por coincidência, esse foi o ano em que foi lançada a música de João Roberto Kelly, Cabeleira do Zezé, que eu ouvia durante todos os Carnavais em minha homenagem, porque ainda tinha cabelo grande quando criança.

Foi nessa época, em Maraú, que encontrei uma matéria sobre a solidão do homem negro gay, que foi como uma tijolada na minha cabeça. Pensei: ‘Isso vai acontecer comigo’. Mas eu já era uma bicha velha e não sabia.
Pesquisei e encontrei muitas histórias tristes, que me levaram a fazer um espetáculo. Escrevi o roteiro contando a minha história: fui estudar no Rio de Janeiro porque queria ser médico — na verdade, porque queria usar as roupas brancas. Eu odiava futebol e falaram que na educação física poderia fazer dança. Assim passei para uma escola de balé e da noite para o dia começou minha trajetória artística. Mas sentia falta da palavra, fui estudar canto lírico e depois juntei tudo: teatro, música e dança.

Tive a sorte de nascer em Petrópolis (no Rio de Janeiro), uma cidade pequena, então podia ficar no mato brincando com os meninos. Tinha um irmão mais velho e brinco que desde pequeno eu já era a Whitney Houston com ele de guarda-costas. Pegava todos os amigos dele (risos). Ele era músico, tocava nas escolas de samba e me levava. Não aprendi a tocar nem chocalho, porque ficava na frente da bateria como se fosse a rainha. Vivia maquiado e dizia que era a Maria Bethânia com meu cabelão.

A condição da homossexualidade no Brasil ainda é muito dolorosa, muito sofrida, principalmente para quem é periférico e está à margem. Por isso que estou fazendo esse trabalho, para mostrar que, quando a gente envelhece, não pode se aposentar da alegria.”
Márcio Januário, 60, ator em cartaz no Espaço Parlapatões com o espetáculo As Canções de Amor de uma Bixa Velha
A caminho dos 60

“O tema da Parada deste ano é o tema da nossa vida. Estou amando essa passagem do tempo depois de ter vivido uma fase bem difícil com as drogas, que me tiraram um tempo gigante. Ainda tenho desejos, mas principalmente a vontade de estar feliz comigo. Tive um casamento de 24 anos que acabou agora há pouco e estou aprendendo isso hoje. Eu tô fervendo, né, amor? (risos)
Mas não é essa ferveção toda, acho que estou me dando de presente para mim mesma, saindo na hora que quiser, curtindo do jeito que quero. Tive uma família muito acolhedora. Apesar de alguns tios e primos preconceituosos, o amor que recebi dentro de casa superava isso.

Comecei a me montar em 1987, já para um concurso, que acabei ganhando no Nostro Mondo (primeira balada gay do Brasil, fechada em 2014). Quem me maquiou foi Cheyenne Crer Crer, que hoje mora na Alemanha. Ela me deixou com a cara da Whitney Houston, só que eu ia fazer um samba, então imagina.

Como foi a primeira vez que entrei numa boate? Quando subo as escadas, vejo aquele monte de homem se beijando e dançando, falei ‘então aqui pode’ e nunca tinha nem beijado um homem. Quando vi o show, então, descobri o que queria fazer na vida. A pessoa que sou hoje é fruto de tudo o que recebi nessa época. Fui abraçada por muitas pessoas: se não tinha sapato do meu tamanho, eu ganhava, se não tinha maquiagem da minha cor, uma bicha preta ao meu lado me dava.
Quando subia ao palco, dava o melhor de mim e lembro que dançava das 10h30 da noite até as 5 da manhã. Talvez eu já tenha sofrido racismo dentro do nosso meio, mas, como dançava a noite inteira, não ligava para mais nada. Mas, até então, eu só tinha inspirações de pessoas brancas, o que sempre me mostraram como bonito.

Talvez as pessoas não tenham noção do quanto a gente investe nas roupas e nos shows, são produções que começam um ou dois meses antes. Vai no estilista, vai na 25 de Março, acha a música… Mas não trocaria minha vida por nada.”
Marcia Pantera, 55, drag queen paulistana precursora do movimento “bate-cabelo”, tipo de performance popularizada nos anos 1990
Vozes do orgulho

“Brinco que eu junto alguns cinturões: de LGBT, mulher, artista, cantora. Chegando aos 60, descobri que essas camadas todas me deram força para continuar. Tive uma juventude muito torturada por mim mesma e pelo que estava ao meu redor. Eu me culpava, achava que não merecia estar junto com a família.
Dentro do camarim, comecei a receber as pessoas, percebi o que estava semeando e que precisava ser responsável com o que dizia. Comecei a entender a palavra ‘orgulho’. Entendi que a visibilidade não é só ter coragem de aparecer, porque vira e mexe alguém me prensava contra a parede e eu nunca neguei ser quem eu era, mas não falava com o orgulho e a alegria que tenho hoje.

Quando comecei a namorar, tinha 16 anos, o mesmo ano em que comecei a cantar. Tinha muitas questões, a minha voz grave sempre me deu vergonha quando jovem. Hoje ela é tudo para mim.
Chego aos 60 com muita tranquilidade para ser quem eu sou. Sem romantizar esse negócio, porque não são só as rugas que chegam — por mais que eu ouça coisas como ‘você é uma sessentona enxuta’, porque gosto de correr e tenho um certo vigor. Eu gostaria de ficar com o meu rostinho de 40 (risos), que acho a melhor década.

Obviamente, quando você sai e está mais velho, não é mais o target, sabe? O target da libido das pessoas, do olhar. E quer saber? Tudo bem, contanto que nos respeitem.
A pessoa LGBT que está ficando idosa talvez tenha coisas a dizer que as pessoas de modo geral não terão. Porque vão falar sobre sobrevivência, tolerância e visibilidade de um lugar muito único. Tem sempre aquele lugar-comum do ‘pô, já passei da metade’, mas, sinceramente, não me importo. Estou mais com o (escritor) Ailton Krenak, que fala: ‘É preciso dar lugar para quem vem’. Não quero viver até cento e não sei quantos anos, quero viver hoje. A minha religião é o instante.”
Zélia Duncan, 60, cantora e compositora nascida em Niterói (RJ) e casada com Flávia Pedras há nove anos
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de junho de 2025, edição nº 2949