Centro Cultural Banco do Brasil faz 25 anos com mostra de Kandinsky
Com exposições de primeira, a instituição já atraiu aos seus prédios históricos mais de 60 milhões de pessoas desde 1989
Como qualquer turista de primeira viagem, a russa Evgenia Petrova, então com 63 anos, tomava uma água de coco no calçadão de Copacabana. O improvável interrompeu a pacata cena na primavera carioca de 2009: Evgenia foi atingida por uma roda que se desprendera de um ônibus. Ficou em coma por uma semana no Hospital Samaritano, em Botafogo. Passou por diversas cirurgias — o impacto da peça foi tão violento que o fígado, o quadril e a perna tiveram de ser reconstruídos. Evgenia não estava no Rio de Janeiro à paisana quando sofreu o acidente. Diretora do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, um dos museus mais importantes do país presidido por Vladimir Putin, ela desembarcara no Rio para prestigiar a mostra Virada Russa, parceria inédita entre a instituição que comanda e o Centro Cultural Banco do Brasil.
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Com uma centena de obras da cena vanguardista do começo do século XX, entre elas trabalhos de Kazimir Malevitch, Wassily Kandinsky e Marc Chagall, a exposição do acervo estreou no CCBB de Brasília e passou pelos endereços do Rio e de São Paulo. A experiência trágica tinha tudo para amargar o começo da relação entre o museu russo e a instituição brasileira. Ao receber alta, no entanto, Evgenia, em vez de maldizer o país, passou a dizer que se sentia um pouco brasileira, “talvez por causa do sangue tropical que recebi nas veias”. Mais do que isso, decidiu fazer do CCBB uma espécie de filial informal do Museu Estatal depois de visitar cada uma das quatro unidades (a mais recente, de 2013, é a de Belo Horizonte). “Descobri uma instituição de excelência”, afirma ela. “Os espaços podem receber obras valiosíssimas, graças a equipamentos que garantem o controle de temperatura, umidade e iluminação.”
Cinco anos depois, os espaços “de excelência” serão ocupados por uma mostra sugerida por Evgenia para o CCBB. Focado em Kandinsky, o evento será a atração principal neste que é o ano em que o CCBB completa um quarto de século. Pela primeira vez o Brasil receberá uma coleção tão completa do precursor do abstracionismo: cerca de cinquenta obras de diferentes fases do artista. O ateliê em Moscou será reproduzido. “Elas raramente saem dos acervos”, diz Rodolfo de Athayde, que assina a curadoria com Evgenia. Cubano, Athayde morou na Rússia antes de se estabelecer no Brasil. Leva o crédito por ter promovido a Virada Russa na programação do CCBB, estabelecendo a ponte com o Museu Estatal.
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A mostra de Kandinsky é um marco na história da instituição por inúmeras razões. Para começar, o CCBB foi procurado por um museu internacional. Receberá um desconto de pelo menos 10% no empréstimo das obras (o valor ainda não foi fechado). Por fim, peças que costumam ficar seis meses fora do Museu Estatal e de galerias russas permanecerão o dobro do tempo nos trópicos: exatos onze meses e 29 dias ocupando, a partir de outubro, os prédios de Brasília, Belo Horizonte, Rio e São Paulo.
Há uma década o CCBB entrou na rota mundial dos curadores por causa da programação gratuita e das tais “condições museológicas”. Nos últimos dois anos, com Impressionismo: Paris e a Modernidade e Mestres do Renascimento, foi além. “Do transporte à exibição, o órgão mostrou-se capaz de promover exposições de altíssimo valor”, diz Athayde. Com 57 obras, Mestres, por exemplo, teve 800 milhões de reais de capital segurado. Por pertencer ao Banco do Brasil, o CCBB está mais apto para bancar a manutenção da estrutura e para captar recursos do que outros espaços de peso, como o Masp, a Oca e a Pinacoteca. O banco investe cerca de 50 milhões de reais por ano no custeio administrativo dos Centros Culturais, enquanto os demais museus dependem de patrocínios privados. Além disso, em 2013, 80% dos 41 milhões de reais por ano destinados à programação vieram da Lei Rouanet via Banco do Brasil.
Beneficiados por restaurações de cifras generosas, os edifícios são um capítulo à parte. As unidades do Rio, de 1989, São Paulo, de 2001, e Belo Horizonte funcionam em prédios do começo do século XX, cujos interiores de mármore, mosaicos venezianos e vitrais art nouveau foram recuperados. Aberta em 2000, a unidade de Brasília ocupa um conjunto de dois andares sobre pilotis de Oscar Niemeyer. Do ponto de vista dos curadores, no entanto, o valor dos prédios ultrapassa o de patrimônio histórico. Depois de 37 milhões de reais de investimento, o prédio de estilo eclético de Belo Horizonte, destinado a abrigar a Secretaria de Segurança nos anos 30, oferece salas espaçosas, fator fundamental para inserir a capital mineira na rota das grandes mostras. Até então, a cidade não entrava no roteiro porque as salas do Palácio das Artes e do Museu de Arte da Pampulha são pequenas.
Nada exemplifica melhor a fusão entre arquitetura e arte quanto a exposição do escultor indiano Anish Kapoor, conhecido pelas obras monumentais. Em 2006, os cinco andares do CCBB Rio foram cortados por uma coluna de 36 metros de vapor, avistada do vão central: tratava-se de Ascension (em português, ascensão). Mesmo quando não tem condições de abrigar determinada peça, o CCBB não desiste. Em 2006, a unidade em Brasília ganhou um pavilhão de vidro com pé-direito alto especialmente para exibir a mesma obra de Kapoor.
“A escolha dos prédios em centros históricos reflete a preocupação de revitalizar áreas degradadas”, diz Delano Valentim, gerente executivo de promoção institucional do Banco do Brasil. “A combinação de qualidade das mostras, beleza arquitetônica e ingresso gratuito atrai gente de diferentes classes sociais, inclusive das mais privilegiadas, que não costumavam frequentar as regiões. ”No Rio, onde 29% da frequência do CCBB é formada por estudantes, a vizinhança com o Espaço Cultural dos Correios e com a Casa França-Brasil resultou em uma dezena de novos bares e restaurantes. Em São Paulo, os estudantes respondem por 53% dos frequentadores – 11% têm alta renda. A fatia gorda do PIB de Brasília representa 38% dos visitantes.
Com um público que ultrapassa 60 milhões de pessoas de 1989 até hoje, o CCBB entra também para a cena da cultura brasileira pela capacidade de arrastar multidões. De acordo com a publicação britânica The Art Newspaper, cujos rankings estão para a arte assim como os do Michelin para a gastronomia, em 2013, a exposição Impressionismo: Paris e a Modernidade, que ocupou o CCBB Rio de outubro de 2012 a janeiro de 2013, foi a terceira mostra de arte mais vista no mundo. O evento, que reuniu pela primeira vez no Brasil 85 obras do acervo do Museu d’Orsay, de Paris, recebeu 561 542 pessoas, com um fluxo diário de mais de 8 000 visitantes.
Em 2012, o CCBB Rio foi o museu mais visitado do Brasil e o 17º do mundo. As unidades de Brasília e São Paulo ocupam a segunda e a terceira posições no ranking nacional. Em 2011, a unidade carioca sediou a mostra mais vista do planeta: O Mundo Mágico de Escher fechou com 573 691 visitantes – ou uma média de 9 677 pessoas por dia (atrás dela ficaram as exposições Kukai’s World: The Arts of Esoteric Buddhism, do Museu Nacional de Tóquio, Landscape Reunited, do Museu Nacional do Palácio, em Taipei, e Alexander McQueen: Savage Beauty, no Metropolitan de Nova York).
Em menos de dois meses, o artista holandês atraiu quase o mesmo público de todo o campeonato de futebol carioca disputado naquele ano. Entre os dias 25 e 27 de março, o último fim de semana da exposição no 1º andar do CCBB Rio, passaram pela bilheteria pouco mais de 60 000 pessoas. Em dois dias, os jogos do Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco levaram aos estádios a metade desse contingente. Isso porque, nos últimos anos, o CCBB pôs os brasileiros cara a cara com obras de arte de primeira grandeza. Exclusiva do Brasil, Mestres reuniu não apenas Rafael e Michelangelo, mas mostrou ao grande público que o Renascimento é feito de nomes menos “pop” como Il Bronzino, Lorenzo Lotto e Francesco Francia. Óleos e estudos vieram de acervos de mais de vinte museus e de colecionadores particulares, o que exigiu grande esforço de produção. “Para retirar a coleção da Itália, foi preciso autorização de sete secretarias de Cultura”, diz Delano Valentim. “Isso só foi possível graças ao nosso currículo.”