Castilla y León, na Espanha, é berço de vinhos seculares e ótimos queijos
Com história riquíssima, muitos castelos, lindas paisagens, gastronomia excelente e nove rotas vinícolas, a região desponta como atraente destino enoturístico
Há 530 anos, em 7 de junho de 1494, os reinos de Castela (hoje Espanha) e de Portugal, então os mais periféricos em grandes navegações, assinaram um acordo de cavalheiros para dividir entre si o planeta e as terras descobertas. Os termos do pacto histórico, certamente celebrado sob taças de vinho, foram traçados nos cômodos das Casas del Tratado, construção que permanece de pé e hoje abriga um museu dedicado ao tema em Tordesilhas.
A cerca de duas horas de carro de Madri, a cidade é um dos pontos de partida para um roteiro por Castilla y León, a maior das dezessete comunidades autônomas da Espanha. Ficam nesse território, por exemplo, Segóvia, vilarejo que atrai gourmets em busca dos cochinillos, o leitãozinho assado lentamente, de carne tenra sob pele crocante , e Salamanca, famosa por sua prestigiosa universidade. Mas Castela e Leão, em bom português, merecem mais atenção. Dona de um importante passado político Valladolid foi capital da Espanha entre os séculos XVI e XVII , a área vem despontando como um valoroso destino enoturístico graças a investimentos em serviços e divulgação do turismo em torno de sua secular produção de vinhos e rica gastronomia sai daqui a metade do jamón ibérico consumido no país, incluindo o célebre Joselito, e premiados queijos de ovelha.
Rasgada de leste a oeste pelo Rio Douro, ou melhor, Río Duero — sim, é aqui que ele nasce, nos picos da Serra de Ubirón, e percorre 600 dos seus 900 quilômetros de extensão Espanha adentro, até atravessar a fronteira e desaguar no Porto , a região tem mais de 80.000 hectares de vinhedos plantados e nove rotas vinícolas oficiais, de diferentes perfis. Ribera del Duero, a mais famosa, é terra do icônico Vega Sicilia, mas nossa viagem segue a rota de Rueda, de cidades como Tordesilhas e Salamanca, além de Zamora, Burgos, León e Valladolid, a capital de Castilla y León. Nessa porção de terra, vinícolas unem tradição e inovação para produzir ótimos vinhos, sobretudo os brancos feitos com verdejo, sua principal casta.
Nos subterrâneos de suas províncias espalham- se labirintos formados por milhares de quilômetros de adegas escavadas no tempo dos romanos, muitas delas preservadas e usadas por novas gerações de produtores.
Próximo à Plaza Mayor de Tordesilhas, a Bodega Muelas permite conhecer de perto essa história. Debaixo do imóvel comprado pelo tataravô em 1889, as irmãs Helena e Reyes Muelas continuam o legado familiar fabricando brancos e tintos em pequenas parcelas, além de um vermute, envelhecido em adegas medievais. A 10 quilômetros dali, a Yllera também recebe visitantes em adegas muito bem preservadas, com ambientação inspirada em seres mitológicos, e um atrativo a mais: um restaurante subterrâneo assinado pelo estrelado chef Martín Berasategui.
Pegando a estrada rumo à cidade de Serrada, a próxima parada é a De Alberto. Com quase quatro séculos de história, ela se diferencia pelo Dorado, um vinho fortificado de cor dourada e aroma de frutas secas produzido com técnica ancestral: parte de sua maturação acontece ao ar livre, sob a luz do sol, em garrafões. “Atualmente somos a única vinícola tradicional a usar esse método, que confere ao vinho um caráter distinto, com notas oxidativas que realçam a sua complexidade e elegância”, explica Ruth González, do departamento de enoturismo da empresa.
Nos arredores de Serrada ainda é possível avistar rebanhos de ovelhas acompanhados por seus pastores, uma cena cada vez mais rara. Benito Cubero, que se levanta todos os dias às 5 da manhã para ordenhar mais de 1 000 ovelhas, seguiu a profissão do pai, José, mas conta que seus filhos não farão o mesmo. “É um trabalho duro, precisa estar pronto sempre que precisar. Os mais jovens querem um trabalho de segunda a sexta.” A falta de interesse das novas gerações pelo ofício preocupa e ameaça a produção artesanal de queijos. “Diferente de uma vaca, que produz 30 litros de leite, uma ovelha dá 6. Não compensa mecanizar a produção”, explica Jesús Sanz, da queijaria fundada por seu avô, Campoveja, que compra o leite de Benito. Parada obrigatória, a loja da Campoveja permite comprar queijos super premiados — o defumado já foi eleito o melhor do mundo em concurso na Inglaterra — e oferece degustações que explicam o processo de produção.
De volta à estrada rumo a Toro, já na rota vinícola de mesmo nome, percorrem-se 50 quilômetros até a Chillón, outra queijaria familiar. O destaque aqui, além dos ótimos queijos oferecidos em diferentes maturações, é o museu dedicado à história do queijo de ovelha na região e da própria fábrica, iniciada pelo galego Manuel Chillón em 1890 e hoje tocada pela quarta geração da família.
Se em Rueda sobressaem os vinhos brancos, em Toro as taças se enchem de tintos potentes e elegantes da casta tinta de toro, uma espécie de clone da famosa tempranillo. “Os vinhos de Toro eram conhecidos por serem muito austeros e alcoólicos, mas, de uns anos para cá, os produtores têm mudado esse perfil e produzido bebidas muito elegantes, mas sem perder corpo”, avalia o jornalista especializado e colunista de Vejinha, Marcelo Copello.
Um dos pioneiros nessa mudança foi Manuel Fariña, que estudou em Valência e modernizou o negócio dos pais, uma vinícola rudimentar que hoje leva seu nome. Em 1970, com intuito de deixar os vinhos mais palatáveis, Manuel, cofundador da denominação de origem de Toro, passou a colher as uvas mais cedo, em setembro, portanto, menos maduras, resultando numa graduação alcoólica mais baixa.
Um dos destaques da marca, o Primeiro, inspirado no francês beaujolais nouveau, é um vinho jovem, que chega ao mercado 45 dias após a colheita que acontece entre setembro e outubro, período em que são realizadas as Fiestas de la Vendimia e vem sempre estampado com uma obra de um artista local escolhida em concurso.
Uma vez em Toro, principal cidade da província de Zamora, não deixe de visitar a Colegiata Santa María la Mayor, templo religioso construído em 1170 e patrimônio histórico espanhol. Para comer, duas dicas são o Doña Negra, que prepara com esmero o tradicional rabo de toro estofado, rabada cozida com vinho tinto, e o restaurante da vinícola La Viña del Abuelo, onde os destaques são os camarões fritos em azeite e alho e o arroz a la zamorana, feito com os deliciosos embutidos locais. Se perdeu? Não se preocupe, uma vez em Castilla y León, não importa a direção, todos os caminhos levarão a uma mesa generosa e a boas taças de vinho.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de novembro de 2024, edição nº 2918