Contra crise, incentivo à leitura e novo modelo de negócios
Apaixonados por livro se movimentam diante de cenário que inclui a chance de taxação do setor
Um romance épico cheio de batalhas, a situação do universo livreiro no Brasil chegou a mais um combate com a proposta de reforma que acaba com a isenção de tributos sobre livros. Tanto a nova contribuição sobre bens e serviços, com alíquota de 12%, que ainda será avaliada na Câmara e no Senado, quanto os efeitos da pandemia no comércio em geral têm mobilizado os defensores da leitura, que já assistiam a um setor combalido de crise em crise. Mais do que entidades como a Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional, a Câmara Brasileira dos Livros e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, chama atenção a mobilização de anônimos e famosos que têm levantado a bandeira dos livros e feito o possível para incentivar o hábito da leitura.
Como uma bússola mais do que necessária nesse momento turbulento, a pesquisa Retratos da Leitura, fruto da parceria entre Instituto Pró-Livro e o Itaú Cultural, traz dados referentes ao perfil do leitor brasileiro e paulistano. Os resultados de sua quinta edição serão divulgados nesta sexta (11). A Vejinha teve acesso com exclusividade aos dados da capital. Eles são inéditos, já que nos outros anos as informações não eram particularizadas por cidade. A análise dos dados, que considera leitor uma pessoa que leu algum livro ou algum capítulo separado, revela que quase 60% dos leitores na capital pertencem às classes C, D e E (leia mais no quadro abaixo). “A leitura não está ligada a uma questão socioeconômica, o que mostra a importância do livro para se qualificar profissionalmente. Tem uma parte da sociedade que entendeu que dominar a letra é fundamental para dominar a vida”, afirma Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. Outra revelação dá conta de que 40% dos paulistanos não são leitores.
Uma boa metáfora para pensar os hábitos de leitura aqui é a de um carro atolado em uma estrada de chão em um dia chuvoso. Nas três últimas edições da pesquisa Retratos do Brasil, feita nos anos de 2007, 2011 e 2015, o patamar da população leitora no país ficou entre 50% a 56%. Em 2020, os 60% de leitores finalmente foram alcançados, mas somente na cidade de São Paulo. “Nesta quinta edição, o índice da capital paulistana é mais alto do que o verificado nas outras cidades pesquisadas e em âmbito nacional”, afirma Zoara Failla, gerente de pesquisas do Instituto Pró-Livro, que coordena o estudo em questão. Para ficar de olho nos índices de outros países, um estudo do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e o Caribe de 2012 mostrou que 80% dos chilenos e 66% dos uruguaios são leitores. Estamos à frente de Peru, com 35%, e México, com apenas 27% de leitores.
Para melhorar esse cenário, têm pipocado na internet campanhas de promoção à leitura. À moda da Hora da Poesia, promovida pela Vejinha no Instagram com participação do diretor institucional da Pinacoteca Paulo Vicelli, a curadora do Masp Isabella Rjeille, a fundadora e diretora da SP-Arte Fernanda Feitosa e a diretora e atriz Carla Candiotto, personalidades têm ido para a frente das câmeras ler linhas e debater o entendimento de obras, numa espécie de grupo do livro virtual em formato de live. O papel de booktubers, influenciadores digitais que comentam literatura, ficou ainda mais patente com o cancelamento, em decorrência da pandemia, de eventos presenciais que movimentam o setor, como a Bienal.
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Entre os apaixonados pelos livros há também uma parcela empreendedora, que acredita no produto também como negócio. Até o fim deste mês, está prevista a inauguração da Livraria Gráfica. Numa pegada bem santa cecilier, o empreendimento, na Rua Barão de Tatuí, terá um formato experimental de impressão in loco com foco em publicações independentes e também a criação de um espaço de encontro para produtores de livros, escritores, gráficos eleitores buscarem soluções para um mercado em crise. Para essa turma, a nova tributação pode minar a continuidade do projeto. Se a proposta passar, um título pode ficar até 20% mais caro.
De acordo com levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), a partir de dados do Ministério do Trabalho, o número de livrarias e papelarias em funcionamento no Brasil encolheu 29% entre 2007 e 2017 (infelizmente, o setor livreiro não é analisado separadamente). Mas a recuperação judicial das grandes redes Cultura e Saraiva demonstra a fragilidade do setor, que contrasta com o boom dos gastos em estética e luxo no país.
A própria pandemia, em sua duração dilatada, tem modificado as possibilidades do setor. No começo dela, João Varella e Cecilia Arbolave, sócios da Livraria Gráfica, viram em seus outros empreendimentos — a editora Lote 42, a Banca e a Sala Tatuí — as vendas presenciais de livros despencar. Ficaram as comercializações em sites parceiros, mas com queda de 60%. Na plataforma própria deles, porém, o fluxo de aquisições teve um aumento de 70%, graças à estruturação anterior. Esse tênue equilíbrio se repete no segmento de pequenas e médias livrarias, que depende de linhas de crédito com juros baixos para a recomposição de seu capital de giro. Grandes redes como a Companhia das Letras têm encampado esse papel oferecendo a esses atores dentro de sua cartela de clientes um fundo de ajuda no valor de 400.000 reais e empréstimos com juros de 2,1% ao ano, parcelados em até doze vezes.
A batalha está longe de estar ganha — e passa por questões delicadas como a falta de paciência — apontada por 21% dos entrevistados da pesquisa para justificar a dificuldade de leitura. “O letramento e o desejo pela leitura envolve uma série de segmentos, passa pela cultura, bibliotecas comunitárias, escolas, pais”, comenta Saron. Para dar aquela forcinha, superleitores têm suas dicas para a incorporação da leitura em diferentes momentos da rotina atribulada, até nos meios de transporte (onde 36% dos entrevistados afirmaram ler). “Para quem não tem muito tempo, a leitura fragmentada é um treino bacana”, diz Zeca Camargo.
LABORATÓRIO DE LIVROS EM SANTA CECÍLIA
No número 223 da Rua Barão de Tatuí, a fachada ganhou formas longilíneas e circulares na cor preta, sobre um fundo rosa salmão. A intervenção junto com um letreiro luminoso anuncia de forma discreta um novo empreendimento no bairro da Santa Cecília: a Livraria Gráfica, que deve lançar seu site até o dia 25. O nome dúbio dá conta do caráter experimental do projeto: não será nem uma livraria convencional, com todas as publicações em exibição, nem apenas uma gráfica de impressão na hora, mas uma mistura das duas vocações.
Com piso abaixo do nível da rua, o salão de aproximadamente 50 metros quadrados terá no lado direito uma estante longa, onde serão acomodados livros produzidos ali e títulos de editoras independentes. Best-sellers encontrados nas redes tradicionais não terão lugar. A confecção de publicações in loco é uma premissa do negócio e acontecerá graças a máquinas, como impressora, guilhotina e dobradora, instaladas no mezanino, de 12 metros quadrados. Alguns contos serão produzidos rapidinho, em cerca de dez minutos. “É quase um laboratório, onde vamos experimentar novas maneiras de fazer livros”, explica o designer e escritor Gustavo Piqueira, um dos sócios. Ele é complementado pelo casal João Varella e Cecilia Arbolave, que também encabeça o projeto. “A nossa ideia era abrir no começo do ano, mas com a pandemia entramos em banho-maria”, conta Varella. “Adaptamos a iniciativa ao novo momento. Em um site próprio, destacaremos uma publicação, que será feita por encomenda e artesanalmente. A proporção do envolvimento do público vai depender dos protocolos de saúde”, detalha Cecilia.
No meio da Livraria Gráfica, três mesas retangulares devem servir tanto ao processo de acabamento de um novo livro quanto ao trabalho em computadores pelos frequentadores. Três sofás marrons acomodarão quem quiser ler ali mesmo ou tomar um expresso feito na cafeteria, instalada ponta inferior da planta. “Queremos quebrar a segmentação da cadeia produtiva e reunir em um mesmo lugar escritores, leitores, designers e gráficos. São inúmeras as possibilidades que podem nascer desses encontros”, afirma Piqueira. Ele planeja eventualmente levar para lá o mimeógrafo de seu estúdio de design, a Casa Rex, que fica na mesma via. Essa integração é um traço da produção independente compartilhado por Varella e Cecilia, que tocam na mesmíssima rua a editora Lote 42, a Banca e a Sala Tatuí, espaços voltados aos livros e cursos. “Não fazemos diferente porque dá dinheiro. É o caminho inverso. A partir de projetos que tocamos separadamente, construímos uma base financeira para pensar o livro de maneira mais livre”, conclui Piqueira.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 16 de setembro de 2020, edição nº 2704.