“Não queremos ataques e sim ser ponte de diálogo”, diz Amara Moira
Coordenadora do Museu da Diversidade Sexual, a escritora fala sobre a nova fase da instituição, reaberta após reformas, polarização e seu futuro na literatura
Amara Moira, 39, acaba de completar sete meses à frente da Coordenação de Exposições e Programação Cultural do Museu da Diversidade Sexual, localizado dentro da Estação República do Metrô.
Em abril deste ano, ela assumiu também o núcleo educativo do museu, reaberto ao público no dia 29 de maio, após um ano e meio fechado para reformas. Agora, a instituição ocupa uma área cinco vezes maior que antes e já planeja seus próximos passos: deve abrir seu acervo para pesquisa ainda em 2024, como adianta Amara.
Nascida em Campinas, a escritora, professora e ativista é doutora em teoria literária pela Unicamp e começou sua transição de gênero há dez anos, durante o doutorado. Ela foi a primeira pessoa transgênero a obter o título na universidade usando seu nome social.
É autora dos livros E Se Eu Fosse Pura e Neca. O último, um romance escrito inteiramente em pajubá (ou bajubá, dialeto criado pela comunidade LGBT e com origem no iorubá e nagô), ganha, em outubro, uma edição estendida pela Companhia das Letras. A publicação original, de dez páginas, cresceu para mais de 100. Na entrevista a seguir, ela comenta esses e outros assuntos, como o avanço dos direitos LGBTQIA+ no Brasil e seus próximos passos na literatura.
“Quero uma sociedade em que possamos pensar diferente sem desejar a morte do outro. Tento estimular o debate sadio e um mundo que não seja tão polarizado”
Que momento mais lhe marcou nesses sete meses atuando no museu?
Em um dos nossos passeios mensais, chamado Rolezinho LGBTQIA+, fizemos um percurso por locais considerados pontos de ocupação das travestis durante a ditadura militar, de acordo com os registros de um dos delegados que mais perseguiu pessoas trans, Guido Fonseca, do 4º Distrito. Nesse dia, iniciamos uma parceria com o Programa Transcidadania. Vieram umas trinta travestis e foi tão bonito ver aquela multidão de corpos dissidentes se movimentando pelo Centro de São Paulo, podendo olhar para os prédios e falar: “Aqui tem história que nos diz respeito”. Entrei no Museu da Diversidade para isso: ocupar as ruas e disputar a memória desta cidade.
O Museu da Diversidade Sexual foi criado em 2012. Desde então, a comunidade LGBTQIA+ aumentou, assim como sua sigla. Como contemplar todas as nuances dessa população na instituição?
Tentamos não comprar brigas que não conseguimos ganhar. Não queremos ataques, mas, sim, servir como uma ponte de diálogo. Para cumprir nosso papel de investigar, descobrir e fortalecer as vias de atuação do ativismo e da comunidade LGBT, temos que aprender a dialogar com amplos setores da sociedade.
O novo mote do museu é “O Desafio da Memória”. Pode explicar o que ele significa?
A memória é aquilo que a gente lembra, mas poderia ser aquilo que foi apagado, roubado. É importante que tenhamos um papel criativo para completar as lacunas que existem. Porque nos foi roubada uma parte da nossa história, porque fingiram que a história do Brasil não tem nada a ver com a nossa, que não pode ser contada a partir da nossa perspectiva. Então, vamos inventar formas de contar a nossa história. O desafio tem a ver com um aspecto mais imaginativo e também com buscar o que está fora dos holofotes. Ao pensar em memória LGBT, surgem alguns nomes na cabeça. Quero ir para os menos óbvios, mas igualmente contundentes e capazes de contar esse legado.
Qual a previsão para abrir o acervo para pesquisas?
A expectativa é de abrir ainda neste ano. Estamos esperando a Emenda Parlamentar que recebemos ficar disponível. Aí começa a construção de um espaço dedicado na nossa sede administrativa (na Avenida São Luís, 120), a duas quadras do Metrô República.
Qual público espera atingir com as ações educativas do museu?
Estamos tentando buscar ativamente que grupos, principalmente instituições de ensino aqui da região, cheguem e se sintam acolhidos neste espaço. Queremos ser uma referência primeiro para o bairro. Quando a gente se solidifica no nosso território, naturalmente nos fortalecemos enquanto uma instituição de cultura de referência e relevância para toda a cidade, para o estado e até, quem sabe, para o país.
Os direitos de pessoas LGBT no Brasil seguem rota de avanço ou de retrocesso?
Quando eu comecei minha transição há dez anos, não sabia se haveria um lugar para mim na sociedade. Para quem viveu aquela realidade, é inacreditável viver com deputadas trans e presença na política institucional. Nós crescemos demais nesses dez anos e isso não tem volta. Mas, quando a mudança é muito brusca, o grupo que estava na posição de hegemonia por tanto tempo começa a ver seu mundo se transformando e se sente incomodado. Temos que ser estratégicos e conseguir lidar com essa situação complexa de forma a não estimular o conflito. Quero viver numa sociedade em que possamos pensar diferente sem desejar a morte do outro. No museu, tento estimular o debate sadio para construir um mundo que não seja tão polarizado.
O que pensa sobre cotas trans nas universidades?
A transformação da nossa sociedade passa por ocupar esses espaços. Sou super favorável a cotas trans, sobretudo se consideram o fator social. Existem algumas percepções que quem não é trans, muitas vezes, vai demorar para ver da mesma forma. Na crítica literária, vejo isso o tempo inteiro. Começam a emergir novas perspectivas dos clássicos, que surgem a partir da escrita de pessoas trans. É importante que elas estejam dentro do espaço acadêmico e possam passar pelo processo formativo. É uma questão crucial de produção de conhecimento, um saber que transforma a sociedade como um todo, e não serve apenas para as elites.
Como será a nova edição de Neca?
É uma expansão mais experimental do texto original. O audiolivro vai sair junto com o impresso, com a minha voz. Nunca tinha publicado por uma editora tão gigantesca (a Companhia das Letras). Meu raio de alcance está se expandindo. Estamos definindo as datas de lançamento da tradução para o inglês. E Se Eu Fosse Pura foi lançado na Argentina e na Colômbia, e acabou de sair no México e nos EUA um trecho do Neca em audiolivro como parte de uma antologia de literatura latino-americana. Contar essas experiências da cultura travesti brasileira fora do Brasil é um sonho que estou realizando.
Publicado em VEJA São Paulo de 19 de julho de 2024, edição nº 2902.