Já ouviu falar em Upcycling?
Antes desperdiçadas, sobras de couro, cristal e madeira são reusadas na manufatura de objetos únicos - e tão ou mais caros que os produtos clássicos
Desde menina, Pascale Mussard, herdeira da sexta geração Hermès, cultiva a mania obsessiva de guardar o que qualquer um classificaria como “cacareco”, mas que ela sempre enxergou como “um dia pode ser útil”. Acostumada a frequentar o ateliê da grife em Pantin, a cerca de 20 minutos do parisiense Rio Sena, Pascale tinha vontade de se apropriar dos retalhos de crocodilo e vitelo, sobras do couro recortado para dar forma a bolsas Kelly e Birkin que se acumulavam sob as mesas dos artesãos, mas bem que poderiam ser úteis para algo. O mesmo acontecia com as fivelas de metal dos acessórios, xícaras e bules da linha mesa, toalhas da linha casa e vasos soprados na cristaleria Saint-Louis, uma das marcas do grupo Hermès. Tudo feito com matéria-prima de primeira, mas que, devido a um defeito às vezes invisível aos olhos leigos, era reprovado no rigorosíssimo controle de qualidade. Pascale, então, defendeu diante do comitê executivo a criação de uma nova marca sob o guarda-chuva da família: a petit h, ou “agazinho”. A ideia dessa irmã mais nova, por isso batizada com letras minúsculas, é peneirar o material rejeitado na linha de produção das catorze especialidades da maison. Depois, ele pode ser trabalhado de duas formas: ou é entregue a um dos oito artesãos para ser reinventado ou é enviado a um artista plástico eleito por Pascale para virar obra de arte.
A petit h não aceita qualquer coisa: a dose de imperfeição da peça rejeitada precisa ser aproveitada de um jeito inteligente, quase sempre com um toque de humor ou “surrealidade” (não espere um objeto de couro defeituoso, portanto). É o caso do Kelly Coucou: a marquinha central foi recortada e deu lugar a um relógio cuco com mecanismo de um dos melhores relojoeiros de Genebra. “Para mim, é tradução do espírito francês no design da mesma forma que o pain perdu na gastronomia”, diz Pascale, sobre um clássico da sobremesa cuja premissa é, como na nossa rabanada, aproveitar o pão velho. As peças são únicas, lançadas uma vez por ano, vendidas numa cidade eleita (Paris, Nova York e Berlim já entraram no roteiro), e não seguem nenhuma cartilha comercial. Vão desde uma escultura de urso de 2 metros de altura, toda de couro, com o laranja-Hermès, até uma luminária feita com xícaras de Limoges empilhadas. Algumas inspiram, inclusive, as linhas da marca com H maiúsculo. É o caso do bracelete feito com couro de rabo de crocodilo: o joalheiro Pierre Hardy o viu e tratou de reproduzi-lo numa versão escamada de prata, exposta na vitrine do número 24 da rue du Faubourg Saint-Honoré. Pascale estuda agora uma forma de fazer um feltro com punhados de fios de seda dos lenços.
A iniciativa da Hermès ilustra uma tendência da indústria do design, o chamado upcycling. A palavra, junção de “up” com reciclagem, significa dar status novo e melhor a algo que acabaria (injustamente) condenado ao lixo. Ao contrário da reciclagem, no entanto, a matéria-prima não precisa “morrer” para renascer — pense numa lata de alumínio, por exemplo, que tem de ser derretida para dar origem a uma nova. Aqui, a proposta é lançar mão de soluções engenhosas sem que o objeto mude de estado químico no processo. É um reúso criativo, que vem se propagando entre grifes que sabem ter em mãos um material merecedor de uma segunda chance.
Na mais recente edição da feira Design Miami, uma das mais inovadoras do segmento, a convite da Fendi, o estúdio holandês Formafantasma desenvolveu objetos com couro e outros materiais naturais descartados nas oficinas da marca italiana. Mas o upcycling não se restringe aos acessórios elaborados com produtos de origem animal. O artista plástico e designer paulistano Alessandro Jordão fez cadeiras, mesas, pufes e estantes com pedaços de lataria de Fusca. “Acredito que nada se copia, tudo se transforma”, conta Jordão. O arquiteto e designer Maurício Arruda pegou as caixas plásticas coloridas utilizadas em feiras e empórios para carregar frutas, verduras e legumes e colocou-as no centro da sala de estar. São cômodas, criados-mudos e bufês cuja estrutura é feita de chapas de madeira maciça teca, com selo de certificação ambiental, e que abrigam as tais cestas feitas de plástico reciclado. O fato de os itens serem artesanais e produzidos em pequena escala atiça o desejo do consumidor, mas talvez o maior valor venha justamente da história de cada um deles. “A ideia é única”, diz o arquiteto Maurício Queiroz, especialista em tendências de consumo. Daí o batismo da cadeira Rememberme (“Lembre-se de mim”, em inglês), do alemão Tobias Juretzek, confeccionada com roupas usadas. No quesi-o closet, aliás, a produtora italiana Livia Giuggioli, casada com o ator britânico Colin Firth, desde 2010 se destaca nas cerimônias do gênero Oscar por vestir apenas longos criados com roupas antigas — um deles elaborado com seu vestido de casamento. Ter o aval da Hermès e do tapete vermelho pode ser o primeiro passo para o reaproveitamento chique ser visto com outros olhos.