As bolsas prediletas da família real belga
No universo da marroquinaria, dominado pela Hermès e pela Louis Vuitton, uma marca de Bruxelas reinventa a história e entra na disputa pelos ombros mais exigentes
O orgulho belga vai além das cervejas, do chocolate, da batata frita, do surrealismo do pintor René Magritte. A pátria do personagem Tintim, criado por Hergé em 1929, também se gaba por sediar a casa de artigos de couro mais antiga do mundo. A Delvaux começou a costurar malas, baús e outros artigos de viagem em 1829, quando Charles Delvaux abriu uma vitrine na parede do ateliê na Rue de l’Empereur, em Bruxelas, para que os pedestres pudessem ver o artesanato que fazia ali dentro. Exatos oito anos antes de a francesa Hermès iniciar suas atividades. Louis Vuitton chegou ao mercado 25 anos depois dessa data. Mais: o estabelecimento belga, fornecedor oficial da família real local desde 1883 e, por isso, sempre parte do look das rainhas e das princesas, foi o primeiro a implantar o conceito de estação da alta-costura para esse acessório: duas vezes por ano eram apresentadas as novas coleções de bolsas. Mas, além das fronteiras da Valônia e de Flandres, Delvaux permanecia quase confidencial, uma informação de poucos e bons consumidores (caso parecido com o da italiana Valextra, mas que é um século mais jovem que a belga). Enquanto a Hermès possui 294 lojas e a Louis Vuitton 435, a Delvaux conta hoje com 46, sendo quinze na Bélgica. Demorou para alguém atinar com o potencial dessa marroquinaria artesanal e de alta qualidade para crescer como os gigantes do luxo e virar uma concorrente à altura também em presença no planeta couro.
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O desejo de expandir o território se concretizou em 2011, quando 80% da empresa foi vendida ao Fung Brands Limited, um grupo de investimentos com sede em Hong Kong, já donos das marcas Sonia Rykiel e Robert Clergerie. O fundo pertence à família Fung, à frente de um negócio de produção e distribuição de roupas, fundado em 1906 em Cantão, na China, que fornece para Zara, Wal-Mart e Esprit. Junto com os novos investidores veio um time de profissionais para tocar a fase de internacionalização. O presidente é Jean-Marc Loubier (ex-CEO da Louis Vuitton e da Céline); Marco Probst, o CEO, veio da Chloé; e a diretora criativa Christina Zeller trocou Paris, onde trabalhava na Givenchy, por Bruxelas. “O desafio é continuarmos clássicos, mas sem ser entediantes”, diz. Christina percorreu os arquivos da marca, autora de mais de 3 000 modelos. “É uma fonte inesgotável de inspiração. Muitas vezes, alguns detalhes ou acessórios do passado são revisitados em novas criações, respeitando os códigos do original.” Aos lendários, adicionou uma cartela de cores que vão além de preto, bege, branco e azul-marinho, misturou materiais como o couro de bezerro com crocodilo e píton, acrescentou correntes. Ainda inventou outros produtos, como os braceletes e os lenços com estampas sempre ligadas aos símbolos do país. Um dos hits é o que reproduz o teto da estufa onde o rei Philippe cultiva suas flores.
Da sede da Delvaux, localizada dentro de uma antiga sede militar do século passado, sai boa parte das 20 000 bolsas produzidas por ano. Do andar de cima vêm os desenhos feitos pela equipe de estilistas, da qual já fizeram parte Didier Vervaeren, Véronique Branquinho e o cultuado Martin Margiela, que fez apenas um modelo para um desfile. No andar térreo, cerca de 35 funcionários transformam manualmente os desenhos em bolsas. Da impressionante (e chamada) biblioteca de couro, um aroma peculiar impregna todo o prédio. Prateleiras e mais prateleiras armazenam rolos de pele de cores e tipos variados. E de idade também — algo raríssimo no universo das bolsas (logos conhecidíssimos, por exemplo, renovam seu estoque semanalmente). Há cortes com mais de cinquenta anos. Ficam reservados para eventuais reparos de bolsas — algumas, inclusive, que já deixaram o ateliê faz décadas. “Na biblioteca reunimos o melhor dessa matéria-prima”, afirma Christina. Ela vem principalmente da Itália e da França. A maior parte das peles é de bezerro. Os outros tipos são os exóticos, como jacaré, cobra, avestruz. O italiano Antonio Gargiulo, que trocou Nápoles por Bruxelas há mais de trinta anos, é o artesão especialista nessa leva finíssima. “O desafio diário aqui é controlar a temperatura das mãos. Não posso suar, pois isso mancha a pele. E aí é preciso decidir o momento exato de colocar ou tirar as luvas de algodão”, diz. Antes de se transformar em objeto de desejo, o material vai passar por vários processos, como amaciamento, corte, costura e colagem.
A bolsa-chave da Delvaux é a Brillant, criada em 1958. É também a mais cara. Um modelo em crocodilo pode chegar a 7 000 euros — uma cifra ainda considerada inferior à de produtos equivalentes dos concorrentes. Ela é formada por 65 pedaços, todos cortados e unidos com cola e costura a mão. O marroquino Mohammed Benelcaid constrói Delvaux há mais de quatro décadas. Começou como auxiliar, em 1973, e hoje, além de estar entre as mãos mais habilidosas do ateliê, dá aulas no Institut des Arts et Métiers de Bruxelas, que forma talentos do artesanato. “Cada bolsa que passa por mim é única. Mas teve uma muito especial: a que fiz como presente de aniversário para minha mulher”, diz ele, enquanto queima a borda de 2 milímetros de uma alça que acabou de ser unida por cola. Depois, o artesão vai pintar o que o fogo queimou com uma fina camada de tinta exatamente da cor do couro. “Uma bolsa é formada por várias complicações, como os relógios. As costuras precisam ficar exatamente alinhadas, não podem existir pregas do forro, e na hora de colocar o fecho é necessário cuidado redobrado para não estragar o couro. É uma sequência de detalhes meticulosos. ”Benelcaid não se dedica apenas a fazer novas bolsas. Ele se envolve num departamento que costuma causar comoção nos funcionários, especialmente nos mais antigos: o serviço de reparos, algo que existe em pouquíssimas marcas, entre elas a sapataria Churchís. Chegam aqui cerca de 100 itens por mês. São bolsas que necessitam de uma nova costura, um ajuste no fecho ou uma hidratação no couro. No meio do expediente, uma roda de funcionários cerca um modelo azul-marinho que acabara de chegar. Eles discutiam o ano exato de fabricação daquela peça: 1952 ou 1953. “É a mais antiga que já vi aqui, e repare no estado dela. Está perfeita, precisa apenas de um ajuste no fecho. O nome disso é qualidade”, diz o artesão.