Don L lança ‘Caro Vapor II’: “Quis sonhar um Brasil totalmente original”
Confira a entrevista com o rapper cearense, que dialoga com a América Latina e passeia por ritmos como funk e samba em álbum ambicioso

Don L embarca em uma viagem musical brasileira e latina no aguardado disco CARO Vapor II – qual a forma de pagamento?, lançado nesta segunda-feira (16).
É a sequência do influente Caro Vapor/Vida e Veneno de Don L (2013), estreia solo do artista cearense após se estabelecer no rap nacional com o grupo Costa a Costa, formado em 2005 e marcado pela mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa (2007).
Na última década, o rapper iniciou outra série paralela de álbuns, Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 1 (2017) e Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 (2021), se colocando como um dos nomes mais interessantes e inovadores da música brasileira, conhecido pelas alcunhas “o rapper favorito do seu favorito” e “o último bom malandro”.
No seu novo universo sonoro, com mais samples e instrumentos orgânicos do que nunca, o rapper flerta com ritmos latinos, o funk e o samba, e as rimas afiadas versam sobre viver e sonhar nos dias de hoje, em meio a algoritmos, bets e influencers. “Pergunto qual a forma de pagamento de viver e não apenas sobreviver no Brasil, tendo sonhos mais amplos e ambiciosos”, disse o rapper, em entrevista à Vejinha.

Produzido pelo próprio artista com Iuri Rio Branco e Nave, o projeto reúne quinze faixas inéditas, com participações especiais como Giovani Cidreira, Anelis Assumpção, Alice Caymmi, Terra Preta, Luiza de Alexandre e MC Dricka, e reverências a músicas de Itamar Assumpção e Dorival Caymmi.
O resultado é um disco colorido e potente, que reúne crônicas sobre a luta contemporânea por uma vida para além do dinheiro. Destaque especial para as faixas Caro, Pimpei Seu Estilo, Bossa, Melhor Vida e Para Kendrick e Kanye, que melhor resume o diálogo do rapper com o Sul Global, em referência ao clássico Para Lennon e McCartney, de Fernando Brant, Márcio Borges e Lô Borges, eternizada na gravação de Milton Nascimento.
O disco também está disponível no YouTube como um álbum visual. No dia 18 de julho, o artista tem show de lançamento marcado em São Paulo, na Audio. Saiba mais sobre o álbum na entrevista a seguir.
Primeiro, sobre a concepção geral do disco. Qual a ideia por trás do subtítulo, Qual a forma de pagamento?
O título é uma brincadeira com o Vapor Barato (icônica canção composta por Jards Macalé e Waly Salomão). Hoje fica até mais claro pensar nessa contraposição, porque a gente já viveu no Brasil uma época em que as pessoas, apesar de todos os problemas sociais e políticos, tinham uma ideia de que a vida simples poderia ser barata, ou seja, ter sonhos que não envolvam diretamente o consumo. Depois dos anos 90, todos os sonhos coletivos foram embora e ficou apenas o desejo de ficar rico. E a vida ficou cada vez mais cara, é cada vez mais difícil viver. No Caro Vapor II eu pergunto qual a forma de pagamento de viver e não apenas sobreviver no Brasil, tendo sonhos mais amplos e ambiciosos.
O disco parte de uma abordagem não colonial, tanto sonoramente quanto nas letras. Como você chegou nesse resultado?
O império cultural norte-americano sempre teve a América Latina debaixo das suas asas, mas tivemos grandes movimentos contrários, de dizer que somos outra coisa, temos nosso próprio som, nossa história. A música é uma área que eles não conseguiram colonizar totalmente, somos um dos únicos países que consomem principalmente nossa própria música. Mas comecei a sentir que a colonização acontece não só diretamente, com a imposição dos artistas estrangeiros, mas também pela sonoridade, com nós fazendo sons muito parecidos. Em arte, forma e discurso não se separam. Então quis sair dos moldes norte-americanos, tanto musicalmente quanto no discurso — o que eu sempre fiz, mas agora cheguei no ápice. Consegui criar uma parada nossa, quis sonhar um Brasil totalmente original, fazendo rap, um tipo de música que vem de lá, dos guetos, mas se tornou do establishment. Em paralelo a isso, tem uma conversa com o Sul Global, com a África e a própria América Latina.
“Imaginamos um futuro ali na década de 60 e 70, mas depois fomos simplesmente desistindo e nos conformando com um não-futuro, que é uma distopia. É o mundo do empreendedorismo: cada um por si”
Em Venci na Vida, tem um trecho de Nem Posso Dizer, faixa do Caro Vapor I, além de participação do Terra Preta, que também gravou o primeiro disco. Como você pensa esse diálogo entre os dois álbuns?
Tem essa parada de responder algumas perguntas, talvez com novas questões. Essa música é bem emblemática disso. No Caro Vapor I eu estava em uma fase muito difícil, de luta constante, perguntando qual seria o preço de vencer, ter sucesso e, principalmente, de aproveitar a vida como a gente almeja — não apenas sobreviver, e sim viver. Depois de muitas desilusões no caminho, meu conceito de vencer na vida se atualizou. Eu venci, mas de outro jeito. Não ando em um Porsche, não tenho grandes números, não estou no Top 5 do Spotify, mas tenho minha fanbase, minha estabilidade, sempre estou evoluindo, meu público só aumenta, meus discos só crescem. E fala um pouco sobre masculinidade, essa ideia de homens terem que dizer: “Sou fod@, olha o que eu tenho, olha o que eu comprei, sou o provedor”. É uma ideia muito pobre do que é ser homem, do que é se relacionar, precisamos pensar em outros moldes, até porque são padrões inalcançáveis e ilusórios.
Outro tema que você levanta nesse disco é o seu sentimento de não pertencimento, na faixa iMigrante. Em 2013, quando lançou Caro Vapor I, você estava chegando em São Paulo. Hoje, doze anos depois, qual a sua relação com esse território?
Me identifico muito naquele filme do Karim Aïnouz, O Céu de Suely, sobre uma mulher que vem para São Paulo, tem uma desilusão amorosa, volta para o interior do Ceará e se percebe como estrangeira lá. É como eu me sinto às vezes em Fortaleza, estou fora há muito tempo. Me vejo sim como estrangeiro, mas em diversos sentidos. No Brasil temos uma relação confusa com questões de nacionalidade, tivemos uma miscigenação forçada, muitas vezes forjada no estupro. E pessoas como eu, que muitas vezes são considerados socialmente brancos, saem do país e não são vistos como brancos. Sendo nordestino, tem outra camada, muito ligada a raça e classe, xenofobia, são várias questões que tornam a identidade brasileira confusa.

Enquanto no Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 (2021) você rimava sobre uma revolução imaginada, em resposta a um mundo em desencanto, aqui em Caro Vapor II você retoma um passado encantado do Brasil. É isso?
Não diria que estou trazendo o passado, e sim um futuro antigo. Em Fortaleza cresci em vários bairros diferentes, boa parte da minha vida morei no Conjunto São Pedro, e depois fui para a Praia do Futuro Velha. Acho esse nome muito interessante, é um futuro que já não é mais (risos). Imaginamos um futuro ali na década de 60 e 70, mas depois fomos simplesmente desistindo e nos conformando com um não-futuro, que é uma distopia. É o mundo do empreendedorismo: cada um por si, o que importa é que somos todos competidores e alguém vai vencer. O grande lance é não ser eu o bicho engolido pelo outro bicho, entendeu? Pensei em trazer um outro futuro, que já existiu, mas que esquecemos completamente.
Sobre a produção deste álbum: é o disco que você usou mais samples e, simultaneamente, gravou mais instrumentos orgânicos?
As duas coisas. Apesar de sempre ter usado muito sample, usamos de uma outra forma agora, como reverências. Estou reverenciando artistas, músicas, atmosferas. Também tiveram alguns samples que não foram liberados e tive que regravar ou refazer algumas coisas aos 45 minutos do segundo tempo. Tive problemas com herdeiros, nenhum com os compositores das músicas.
Me fala sobre a safra dessas músicas, algumas são ideias antigas ou todas foram criadas no mesmo período?
É um disco com músicas que eu queria fazer há muito tempo, mas escrevi ele basicamente em um mês. Assim que comecei a trabalhar com o Iuri (Rio Branco), logo levantamos três beats. O primeiro foi Para Kendrick e Kanye, que é a música que melhor resume o discurso do álbum. Mas eu já tinha essas ideias todas, tanto de produção, sonoridade, como eu queria utilizar a música antiga brasileira para criar algo novo.
Porque Para Kendrick e Kanye é o melhor resumo do discurso do disco, e porque decidiu inverter “América do Sul” no refrão?
Primeiro a gente tinha usado o sample da voz do Milton Nascimento, mas tivemos algumas dificuldades de liberação. Chamei o Giovani Cidreira, que, para mim, é um artista contemporâneo do tamanho desses caras, Milton Nascimento, Belchior. Mas ainda assim os herdeiros da obra original quiseram que a gente não a citasse diretamente. Tive que mudar, e me veio essa ideia, que ficou melhor ainda, porque o que eles chamam de América é só um pedacinho do continente. Brincando com Para Lennon e McCartney, os caras mais influentes naquela época. A galera do Clube da Esquina tinha os Beatles como referência, mas aqui eles criaram algo que, para mim, é muito mais interessante. Também é uma mensagem para nós, que às vezes pensamos que lá fora tudo é melhor por algum motivo mágico, que eles fazem melhor, mas é simplesmente porque eles colonizam o resto do mundo.
Você se aventura no funk em Pimpei Seu Estilo e Melhor Vida. Era um desejo antigo fazer algo nesse gênero?
Sempre, faço brincadeiras com o funk desde o Costa a Costa, lá atrás. Amo o funk, é uma música eletrônica originalmente brasileira, é o hip-hop brasileiro mais genuíno. São as manifestações de hip-hop do terceiro mundo, o funk, o reggaeton, o kuduro, até em algum nível o afrobeat. São coisas diferentes que imprimem algo local, e o funk eu acho genial. E se renova de uma forma muito interessante como criação coletiva: o que sai agora em seis meses já é passado. Usei aquela bem clássica ali no Pimpei Seu Estilo, e em Melhor Vida eu converso com o funk de BH, que é o meu favorito no momento.
Audio. Avenida Francisco Matarazzo, 694, Água Branca, ☎ 3675-1991. ♿ Sex. (18), 21h. R$ 132,00 a R$ 168,00. 18 anos. ticket360.com.br.