O nordestino e o tamanho do pênis
Há dois dias as redes sociais no Brasil vêm recebendo uma enxurrada de manifestações preconceituosas e intolerantes contra nordestinos. Tudo isso motivado pelo julgamento da qualidade do voto do nordestino nas eleições do último domingo. Desta vez o motivo foram as eleições mas há uma lista enorme de “motivos” para manifestar intolerância e preconceito contra […]
Há dois dias as redes sociais no Brasil vêm recebendo uma enxurrada de manifestações preconceituosas e intolerantes contra nordestinos. Tudo isso motivado pelo julgamento da qualidade do voto do nordestino nas eleições do último domingo. Desta vez o motivo foram as eleições mas há uma lista enorme de “motivos” para manifestar intolerância e preconceito contra diferentes populações na sociedade.
Todo ser humano desenvolve ao longo da vida um conjunto sempre dinâmico de habilidades. No curso temporal é inevitável que apareçam inseguranças quanto à expressão de tais habilidades. Saber lidar com essas inseguranças é um dos elementos mais importantes na determinação do bem-estar e no desenvolvimento pleno das potencialidades de cada um.
Dependendo da história de aprendizagem, cada um enfrenta as próprias inseguranças de uma forma. Há quem negue suas inseguranças, há quem as explicite e há quem as desconheça. Em qualquer caso a estratégia de enfrentamento, consciente ou inconsciente, pode se expressar de modos distintos. As inseguranças podem fazer com que a pessoa se retraia no convívio social, de modo a ficar cada vez mais marginalizada e excluída das oportunidades. Isso é o que ocorre, por exemplo, com quem sofre bullying na escola ou assédio no ambiente de trabalho. Outra forma de enfrentamento das inseguranças é a agressividade, como acontece em casos de violência reativa, explosões de raiva que acabam em tragédias. Finalmente, outro caminho possível é o enfrentamento das lacunas que a pessoa tem em seu repertório comportamental, de modo a explorar suas potencialidades no enfrentamento das inseguranças. Reforçando, tudo depende da história de aprendizagem de cada um, das experiências que vivenciou e de suas características de personalidade.
Numa sociedade mais socioeconomicamente homogênea, podemos lançar o olhar que acabo de descrever de forma mais ou menos tranquila. Note que a insegurança que uma pessoa tem a respeito de si mesma pode ser a brecha para que ela seja marginalizada no grupo do qual faz (ou deveria fazer) parte. Isso é uma violência das mais perversas. Mas por que será que a insegurança de alguém é muitas vezes explorada por outra ao invés de representar uma oportunidade de prestar apoio? A explicação é que a outra pessoa também tem suas próprias inseguranças. Só que seu modo de enfrentamento acaba sendo o da violência como um jeito de camuflar sua própria insegurança.
Como disse, esse é o quadro mais ou menos claro em sociedades mais socioeconomicamente homogêneas. Mas essa não é a realidade do Brasil (de fato, não é a realidade nem da maior parte do mundo). Nossa sociedade traz desde o início de sua história ocidental toda sorte de violência cujo contexto criou e mantém diferenças profundas nas condições de vida entre seus habitantes. Quando os europeus chegaram aqui, passaram a explorar os recursos naturais de todo o território, exterminaram boa parte da população indígena e violentaram a cultura vigente até então na medida em que domesticaram parte daquela população. Depois disso, estabeleceu-se no Brasil um modelo produtivista baseado no trabalho escravo feito por africanos traficados para cá. Faz só um pouco mais de 100 anos que o trabalho escravo foi oficialmente abandonado no Brasil.
Nesse contexto, abandonado também foi o escravo que, embora livre, não tinha propriedades, não tinha renda e nem acesso à educação. Assim, essa população foi novamente escravizada, só que agora cumprindo o papel de trabalhador. Esse papel é mais ou menos o mesmo desempenhado até hoje por descendentes de africanos e de índios. Esse período de pouco mais de 100 anos desde o fim da escravidão cobre quatro gerações no máximo. Como imaginar que esse gradiente social seja superado em tão pouco tempo sem que ações diretas de desagravo e reparação sejam feitas?
O povo nordestino traz de modo forte os traços históricos dessa violência ao longo de 514 anos de história após achamento do Brasil pelos portugueses. Do mesmo modo que africanos escravizados faziam todo o trabalho pesado para benefício de poucos, o pobre de hoje (cuja pobreza está determinada desde antes do sistema escravocrata e tendo sido por ele reforçada) também trabalha duro para benefício de poucos. Geograficamente, a pobreza cintila no norte e no nordeste. Mas ela está encrustada também no resto do país. E a pobreza, mesmo nas regiões mais desenvolvidas, tem a cara do negro e do nordestino. São Paulo se ergueu assim, Brasília e outros grandes centros também. E o nordestino de São Paulo, após ter dado seu suor para erguer a metrópole, foi empurrado para as regiões periféricas, sem a presença do poder público, sem conforto e sem oportunidades. São Paulo se orgulha de ser a locomotiva do país mas, ao mesmo tempo, tenta esconder o papel do nordestino na sua consolidação como metrópole.
E aqui é que chegamos no tamanho do pênis. Vou apelar para a ajuda da psicanálise, que propõe o conceito de falo como representação de plenitude e completude da existência. O pênis é seu símbolo mais clássico mas o falo pode ser o que falta para preencher essa sensação de plenitude. A ideia básica é a de que a falta de algo para a completa satisfação do ser humano lhe gera angústia. Para preencher tal vazio angustiante, o indivíduo busca compensações fálicas. Pode ser um automóvel, conquistas profissionais, o próprio pênis, a conta bancária, a necessidade de “jactar-se” (para lembrar uma expressão de Leonel Brizola) das próprias qualidades. Todos esses elementos fálicos, ao mesmo tempo em que podem ser compensações por carências que a pessoa tem, podem também ser a representação dessa carência.
Talvez, se me permitem uma hipótese psíquica para o incômodo que muitas pessoas têm com os nordestinos, São Paulo pode ser grande por ter simbolicamente um pênis pequeno. E eu penso que a pequenez peniana de São Paulo vem justamente da dificuldade que tem de lidar com o papel do nordestino (por exemplo) em sua História (e na História do Brasil). O vazio que existe nesse caso é a ausência de um orgulho de ter feito tudo sozinha. São Paulo não se fez sozinha. São Paulo existe (e o Brasil também) com a participação do povo nordestino, ainda que sendo explorado e escravizado de várias formas, seja pelos coronéis do nordeste, seja pelos modernos coronéis da metrópole. O ódio que estamos vendo nos últimos dias me parece ser a representação explícita da insegurança que temos. A presença do nordestino incomoda porque desmonta nossa fantasia de onipotência como locomotiva do país.
Está cada vez mais urgente que o país se reconcilie psicologicamente e profundamente com o nordeste, que o desagrave de tanto ódio desferido por séculos. E olha que o povo nordestino nunca revida às agressões, o que só deixa claros sua benevolência e seu bom caráter. O nordeste está sempre com os braços abertos para o resto do país. O futuro do Brasil passa por essa reconciliação com o nordeste. Nordeste que já presenteou o Brasil com Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Patativa do Assaré, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Josué Montello, Ferreira Gullar, Gonçalves Dias, Manuel Bandeira, José de Alencar, Arthur Azevedo, Luiz Gonzaga e tantos outros. O nordeste da alegria, da beleza, do trabalho e da superação. Sem que a pobreza seja erradicada no nordeste (e no resto do país), não será possível vivermos numa sociedade sem violência.
Amigo nordestino, não se mantenha resignado. Este país é seu também e ele é muito grato a você por dar cor, alegria e desenvolvimento para a sociedade.