SPSonha: O que prédios recuados têm a ver com a sensação de insegurança?
O economista Matheus Hector Garcia discute como as calçadas ficam sem vida (e sem vigilância espontânea) quando os térreos são muito afastados
O número de assassinatos em São Paulo caiu drasticamente nos últimos vinte anos. Entre 1999 e 2017, a taxa de homicídios por 100 000 habitantes na capital diminuiu de 52 para 7,5. O Jardim Ângela, distrito da Zona Sul de São Paulo que, em 1996, foi considerado pela ONU o bairro mais violento do mundo, tem hoje índices de homicídios similares aos de Miami.
São Paulo está mais segura, mas o paulistano não sente a diferença. A culpa não é apenas dos programas policiais de fim de tarde: o número de roubos aumentou 30% entre 1998 e 2016. A sensação de insegurança ainda é enorme. No último relatório dos Indicadores de Referência de Bem-Estar no Município (Irbem), realizado pela Rede Nossa São Paulo em 2015, 89% dos paulistanos achavam a cidade pouco ou nada segura; em 2008, esse número era de 87%.
Nosso espaço urbano é avesso à convivência e à segurança. Na visão da urbanista Jane Jacobs, calçadas movimentadas melhoram a sensação de segurança, pois os pedestres autopoliciam as vias por onde andam e os assaltantes, por sua vez, evitam ruas movimentadas. Para ela, bairros seguros devem ter construções próximo da calçada, e os recuos são um problema. Os moradores deveriam ser os “olhos das ruas” e, ao estarem perto da calçada, atuariam como “vigilantes naturais”.
Até 1972, a cidade não tinha um plano diretor. A partir de então, adotou regras que obrigam os novos edifícios a deixar recuos e os impedem de ocupar o terreno inteiro. Assim, matamos toda a criatividade e boa intuição dos arquitetos de décadas anteriores. Na nova legislação, projetos como Copan e Conjunto Nacional, símbolos de autovigilância que mesclam residências com comércio e permanecem vivos 24 horas por dia, não poderiam mais ser construídos.
A justificava era que os recuos permitiriam alargar as vias para carros e seriam mais higiênicos para a cidade. Concepção atrasada, baseada numa teoria do século XVII que culpava o miasma (“ar ruim”) por diversas doenças e propunha a circulação do ar como solução. Hoje está claro que a falta de saneamento e a contaminação da água eram os responsáveis pelas endemias, mas os urbanistas ainda resistem à teoria microbacteriana.
Esse erro de diagnóstico promoveu o desperdício de terrenos em uma cidade com crescente demanda por moradias e decretou o fim das “fachadas ativas”. Sem resistência, os recuos caíram no gosto dos moradores e do mercado imobiliário, por causa da privacidade e da falsa sensação de segurança.
Dados revelam que a mudança na disposição de fachadas e recuos melhoraria o quadro. Outro estudo, do professor Renato Saboya, em parceria com Júlio Vargas e Vinicius Netto, mostra a relação dos pedestres com as características arquitetônicas de diferentes regiões de Porto Alegre, Florianópolis e Rio de Janeiro. O efeito nocivo dos recuos é surpreendente. Ruas com prédios sem recuo frontal acabam tendo cinco vezes mais pedestres do que aquelas com prédios afastados da calçada. A mesma lógica vale para os recuos laterais: regiões com prédios próximos recebem, em média, quinze pedestres por minuto; regiões com prédios afastados, apenas três.
São Paulo, na última atualização do plano diretor, tentou enfrentar esse problema e estabeleceu incentivos e obrigatoriedades de fachadas ativas em algumas regiões. Entretanto, a medida é módica, pois não ataca os recuos laterais e mantém a taxa de ocupação, que não permite o uso completo do terreno.
Ainda é culturalmente difícil tratar desse tema no Brasil, já que décadas de má arquitetura e planejamento acostumaram os habitantes a valorizar prédios individuais e isolados. Enquanto em São Paulo é inconcebível pensar em edifícios colados, em Paris e Nova York as pessoas elogiam a beleza urbanística das cidades.
Mudar a taxa de ocupação do solo e acabar com os recuos não são apenas medidas que melhoram o aproveitamento dos terrenos e aumentam o número de moradias, mas também maneiras de construir uma cidade mais convidativa e segura. De que adianta sentir-se seguro do portão para dentro mas ser vulnerável do portão para fora?
> Matheus Hector Garcia é economista e cofundador do Consilium Insper.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 05 de junho de 2019, edição nº 2637.