Judiciário precisa rever a forma como ocupa o Centro de São Paulo
A região, que vive momento delicado, vê o térreo de seu maior prédio na Praça do Patriarca se tornar uma garagem improvisada para carros oficiais
O sofrimento da Praça do Patriarca não tem fim. Depois do fechamento de lojas e do pórtico metálico para uma Galeria Prestes Maia eternamente sem uso, o térreo de seu maior prédio foi transformado em uma improvisada garagem para carros oficiais.
Com trinta andares, 25 000 metros quadrados de área construída em um terreno de exíguos 800 metros quadrados, o Edifício Barão de Iguape foi sede do Unibanco por décadas. Desapropriado pelo governo do estado, virou centro administrativo do Tribunal de Justiça de São Paulo. Só parte da equipe da secretaria de administração do TJ (de um total de 1 900 servidores) ocupa sete andares ali.
Ainda que seja positivo que o Poder Judiciário ocupe prédios que estavam vazios no Centro da cidade, o “como se ocupa” importa muito. A funcionalidade dos calçadões paulistanos até pode ser discutida, mas é estranho que as autoridades do Judiciário não possam caminhar até o prédio, como todos os demais trabalhadores do Centro. Andar faz bem. Do prefeito e secretários municipais aos diretores da Bolsa de Valores ou vereadores, o calçadão obriga a caminhar, seja para quem trabalha no Martinelli ou no Farol Santander. Seja para ir tomar um café ou almoçar, ou para o dia a dia no escritório. Imagine se o exemplo do tribunal contagia quem adora um privilégio exclusivo, e os demais prédios da área começam a criar estacionamentos e liberar carros por ali.
O Centro de São Paulo vive um momento mais que delicado. Restaurantes fechados, aumento da população em situação de rua, zeladoria e limpeza precárias, esvaziamento. Então cada térreo que seja usado, que mantenha o movimento, que provoque a permanência de “olhos na rua” conta. Será que nenhum serviço para centenas de funcionários — café, refeitório, agência bancária, galeria, centro de convivência — não poderia ser transferido para o térreo?
Em Madri, por exemplo, o STF espanhol é vizinho de porta de um simpático café, El Supremo. Mesmo com todo o aparato de segurança, o então presidente americano Barack Obama saiu a pé diversas vezes da Casa Branca. Ministros batem ponto em cafés e restaurantes a metros do Executivo americano.
Em São Paulo, é sintomático que grandes prédios públicos sejam isolados. Do Palácio dos Bandeirantes à Assembleia Legislativa. Síndrome de Brasília.
Não é o único caso. O teatro do antigo Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga, hoje ocupado também pelo TJ paulista, permanece fechado há anos. Em 2007, quando o TJ-SP alugou o prédio, foi prometido que o espaço com 390 lugares ficaria à disposição das secretarias municipal e estadual de Cultura. O então presidente do tribunal, Celso Limongi, defendia a ideia. Até se discutiu a cessão do espaço à SP Escola de Teatro, na vizinha Praça Roosevelt, também do governo estadual (que possui salas, mas não um teatro de verdade na área).
A promessa não foi cumprida. Em 2015, a OAB pressionou pela reabertura e até ofereceu ajuda econômica. Nada feito. O então presidente do TJ, José Renato Nalini, declarou que o teatro aberto provocaria o “acréscimo de despesas com água, energia e limpeza”, e que o “atendimento às normas de acessibilidade e a obtenção de alvará implicariam em custos”.
À época, também se falava da segurança do prédio. O que coloca a questão: a sede de um tribunal já não deveria ser suficientemente protegida? É estranho que prédios públicos recorram a essa retórica (outra cena surpreendente, dessa vez no Ibirapuera, é ver a sede do Quartel-General do Exército com arame farpado sobre seu muro).
É previsível que muitos teatros e espaços para espetáculos não sobreviverão ao pós-pandemia. Como reformas, adaptações e burocracias podem levar anos na cidade, seria ótimo que o TJ voltasse a examinar a reabertura do Teatro Hilton. Seria um ato generoso com São Paulo.
Afinal, de pequenos atos se constrói uma reputação. Um caso infame, que ganhou visibilidade por estar em plena Avenida Paulista, foi o fechamento da praça — antes pública — do conjunto Cetenco Plaza, sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
O conjunto envidraçado Ray-Ban, que já foi cenário da novela Rainha da Sucata e que abriga também a Caixa Econômica Federal e o tradicional restaurante Spot, era uma rara praça da Paulista dentro de um empreendimento privado.
Ficou assim, bem mantida e aberta por mais de trinta anos. Os 10 000 metros quadrados de jardins, desenhados pelo paisagista Luciano Fiaschi, eram frequentados por famílias, casais e funcionários da região, especialmente nos fins de semana. Uma reforma em 2019 fechou a praça com alambrados e portões de correr preto, que deixaram tudo com cara de presídio de segurança máxima.
Certamente, a decisão do condomínio passou pelo tribunal. Ninguém pensou na mensagem de isolamento e exclusão que estaria passando para os cidadãos?
Em uma das áreas mais seguras de São Paulo (vizinho ao Banco Central e ao Itaú, a uma quadra do escritório da Presidência da República na capital), a reforma não contribui para a imagem do Judiciário.
Se o Conjunto Nacional, o prédio da Gazeta, a Casa das Rosas, o Shopping Cidade de São Paulo e o Instituto Moreira Salles podem ter térreos abertos, por que justamente um tribunal público não confiaria em sua segurança?
Uma boa exceção, já há alguns anos, de integração com a vida na rua é o Museu do TJSP, que funciona no Palacete Conde de Sarzedas, pertinho da Praça da Sé. O palacete foi restaurado, enquanto se permitiu que fosse construído um enorme prédio envidraçado atrás, usado pelos desembargadores do TJ. O palacete do fim do século XIX conta apenas com um gradil baixinho na entrada. Sem cara de fortaleza inacessível. E todos passam bem.
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Publicado em VEJA São Paulo de 03 de março de 2021, edição nº 2727