Descentralizar São Paulo: uma promessa difícil de cumprir
O investimento em áreas afastadas do Centro deve ter o propósito de promover o acesso do cidadão à cidade, e não de isolá-lo em seu bairro
São Paulo é imensa e cheia de desafios. Com 12 milhões de habitantes, a maior cidade da América Latina sofre para prover uma boa qualidade de vida aos seus moradores. Os congestionamentos são implacáveis. O funcionamento do transporte público ainda está longe do ideal. O Centro expandido concentra um volume de empregos desproporcional à sua população. Não é surpresa que o deslocamento até o local de trabalho seja uma das principais reclamações dos paulistanos.
Diante desse quadro, levar mais empregos para bairros afastados do Centro parece uma iniciativa muito atraente. Além de reduzir o tempo gasto diariamente no transporte, a descentralização teria o efeito de diminuir a desigualdade territorial, aumentando a renda per capita desses distritos. A ideia parece encontrar eco na disputa eleitoral para a prefeitura de São Paulo. Planos de governo de partidos tão diversos quanto PSD, PSDB, PT, Rede, PSL e Republicanos incluíram propostas nesse sentido.
As candidatas Marina Helou e Joice Hasselmann propuseram ainda que São Paulo se tornasse uma “cidade de 15 minutos”. O termo remete ao programa de governo de Anne Hidalgo, que está à frente da prefeitura de Paris desde 2014. Suas propostas urbanísticas foram concebidas em parceria com o professor Carlos Moreno, da Universidade Sorbonne.
A estratégia de Hidalgo e Moreno consiste em maximizar o número de serviços que cada morador tem próximo à sua habitação. Supermercados, escolas, hospitais, escritórios e parques devem estar presentes em todos os bairros, junto com o uso residencial. A ideia é que os cidadãos morem perto de seus empregos e cumpram suas atividades diárias em um raio de poucos quilômetros ao redor de suas casas.A maioria dos deslocamentos se daria a pé ou de bicicleta, desestimulando o uso do automóvel e aliviando a pressão no transporte público. Nas palavras de Moreno, Paris deve possuir “muitos centros nos quais as pessoas possam encontrar o que precisam”
A cidade de quinze minutos se parece bastante como “modelo da vila urbana” que o urbanista Alain Bertaudd escreve em seu livro Order without Design. Nesse modelo, os empregos estariam distribuídos em pequenos núcleos. Haveria muitos desses núcleos, que estariam distribuídos por toda a malha urbana. A proposta costuma vir acompanhada de uma visão extremamente otimista. Seus defensores imaginam comunidades onde as pessoas se conhecem, frequentam diariamente as lojas da vizinhança, se locomovem sem emitir carbono e têm tempo de sobra para aproveitar os espaços de lazer que o bairro oferece. Iniciativas como essa são populares porque suas promessas são extremamente sedutoras. O problema, segundo Bertaud, é que esse modelo só existe na cabeça dos urbanistas.
Grandes cidades não se organizam em pequenos núcleos independentes porque esse padrão restringe o acesso ao mercado de trabalho. As pessoas costumam escolher seus empregos analisando variáveis como salário e oportunidades de carreira. Estar próximo ao emprego é desejável, mas não determinante. Além disso, os membros de cada família costumam ter interesses profissionais bastante distintos. Os negócios, por sua vez, são atraídos para as grandes metrópoles pela vasta gama de profissionais especializados que elas oferecem.
Não é razoável supor que uma grande empresa vai encontrar a variedade de funcionários de que necessita no bairro onde se instala.
As propostas de Hidalgo e Moreno funcionam melhor quando o objetivo é integrar os núcleos menos centrais ao conjunto da cidade. Alguns princípios da cidade de quinze minutos, como construir boas calçadas e ciclovias ao redor dos terminais de transporte, são importantíssimos para a mobilidade urbana. A possibilidade de pedalar até esses terminais é especialmente importante para os moradores da periferia, que muitas vezes precisam caminhar quilômetros até as estações de trem e metrô. Também é necessário aumentar a capilaridade do transporte público, permitindo que vans, micro-ônibus e apps de mobilidade façam parte do sistema.
O espaço urbano é concorrido porque as empresas querem estar perto umas das outras para fazer negócios. As empresas que se instalam no centro expandido atraem escritórios de advocacia, contabilidade, design e arquitetura, além de restaurantes, lojas e escolas. Essa rede de atividade econômica conecta pessoas com habilidades variadas, criando um ambiente onde os trabalhadores podem compartilhar conhecimento e gerar inovação. Esse mecanismo colaborativo gera ganhos de produtividade que atraem mais empresas, que por sua vez atraem mais trabalhadores, criando um círculo virtuoso. Quando questionado sobre a cidade de quinze minutos, o analista político Anthony Breach declarou que os trabalhadores querem “trabalhar nos locais onde o valor da terra é alto e morar em um local onde o valor da terra é mais barato”. Os locais com maior atividade econômica oferecem mais oportunidades profissionais e por isso têm um custo de moradia mais caro. Essa correlação existe em quase todas as cidades, mas em São Paulo o efeito é exacerbado por uma série de restrições à construção civil.
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Há bairros com excelente infraestrutura, como Jardim Europa, Alto de Pinheiros e Morumbi, onde o Plano Diretor determina a ocupação de baixa densidade. Até mesmo em ruas centrais, como a Augusta e a Consolação, não é difícil encontrar lotes pouco aproveitados. Restringir o potencial construtivo dessas regiões obriga os paulistanos a procurar residências em bairros cada vez mais distantes. O resultado é uma pressão enorme no sistema de transporte urbano. Em vez de levar empregos para perto das pessoas, São Paulo pode optar por trazer mais pessoas para perto de seus empregos.
Há receio de que aumentar a ocupação dessas áreas tornará a cidade feia e caótica. Essa preocupação é legítima, mas precisa ser revista. As décadas de 50 e 60 foram um período de intensa colaboração entre o mercado imobiliário e os arquitetos paulistanos. Alguns dos edifícios mais interessantes dessa época, como o Louvre, o Cícero Prado e o Parque das Hortênsias, não seriam permitidos pela legislação atual. Os limites de altura e uso do solo, introduzidos nas décadas seguintes, interromperam a busca por soluções que promovessem o adensamento com qualidade urbanística. Outras regras, como a proibição de comércio no térreo e os afastamentos obrigatórios, impediram a integração entre edifício e rua que existe em prédios como o Copan e o Conjunto Nacional.
Outra preocupação comum é que, com mais pessoas morando no Centro, o trânsito se tornaria inviável. Na verdade, o que estimula os cidadãos a utilizar o automóvel são justamente as grandes distâncias que precisam ser percorridas diariamente. Quem mora em bairros densos e bem localizados pode acessar mais facilmente o transporte público. Seria desejável, inclusive, que algumas ruas reduzissem o espaço destinado às faixas de rolamento e aos estacionamentos ao longo da via. Esse espaço deve ser destinado à ampliação de calçadas, pois com um Centro mais adensado, o fluxo de pedestres deve aumentar.
Uma população maior nas áreas centrais também ampliaria o uso dos equipamentos públicos. Centros culturais e estações de metrô, por exemplo, têm mais alcance quando existem muitas pessoas morando nas proximidades. No entanto, é comum que o poder público realize essas obras ao mesmo tempo em que restringe a construção de mais unidades habitacionais nos seus arredores. A cidade poderia inverter essa lógica, casando o investimento em infraestrutura com o investimento em moradia
Um observador que caminhasse de Marsilac, no extremo sul do município, até a Catedral da Sé, no Centro, certamente se espantaria com a desigualdade espacial de São Paulo. A cidade que responde por 10% do PIB nacional tem algumas das periferias mais abandonadas do país. A capacidade de investir nessas regiões é uma das melhores ferramentas que os planejadores têm à sua disposição. A descentralização dos recursos é bem-vinda quando são realizados investimentos que têm impacto direto na vida das pessoas, como escolas, hospitais e obras de saneamento básico.
Em uma cidade com o tamanho de São Paulo, é natural que surjam polos de atividade econômica até mesmo em bairros distantes. O problema é quando a descentralização se torna política de Estado. O investimento em áreas afastadas do Centro deve ter o propósito de promover o acesso do cidadão à cidade, e não de isolá-lo em seu bairro. A alta concentração de empregos no centro expandido não é um problema por si só. O problema está no acesso a essas oportunidades de trabalho, que precisa ser democratizado com uma melhor política habitacional e de mobilidade.
Quando se fala das novas centralidades de São Paulo, devemos nos perguntar: elas surgiram espontaneamente, ou foram alimentadas pela impossibilidade de aumentar a ocupação das áreas centrais? Se o adensamento do Centro não houvesse sido restringido, é provável que a cidade não tivesse se espalhado para regiões tão distantes. Muitos dos problemas que São Paulo enfrenta hoje são fruto desse espraiamento. Políticas públicas devem ter o objetivo de manejar a descentralização, não de promovê-la. A cidade é mais forte quando se busca a interdependência de suas regiões, e não a independência.
Este artigo foi originalmente publicado no CaosPlanejado (caosplanejado.com), site sobre urbanismo, com foco nas cidades brasileiras. Siga no Instagram e no Facebook.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 3 de dezembro de 2020, edição nº 2715.