“O Casamento” traz Nelson Rodrigues para os tempos de Marco Feliciano
Em setembro de 1966, o primeiro e único romance lançado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) rendeu muito assunto. Assim como grande maioria de suas dezessete peças, o livro batizado de “O Casamento” provocou uma enorme polêmica e, em poucas semanas, teve seus exemplares recolhidos pela censura. A trama, calcada em temas como incesto, homossexualidade e […]
Em setembro de 1966, o primeiro e único romance lançado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) rendeu muito assunto. Assim como grande maioria de suas dezessete peças, o livro batizado de “O Casamento” provocou uma enorme polêmica e, em poucas semanas, teve seus exemplares recolhidos pela censura. A trama, calcada em temas como incesto, homossexualidade e hipocrisia social, chocou inclusive os menos conservadores em um período de entressafra dramatúrgica do autor.
É curioso perceber que, quase cinco décadas depois, o público não disfarça a surpresa ao deparar com as provocações rodriguianas. Adaptado e dirigido por Johana Albuquerque, o texto ganha o palco do Tuca e torna-se possível ouvir interjeições de espanto da plateia em algumas cenas. Em tom de tragicomédia, transitando pela farsa e o burlesco, a trama é centrada na ambígua relação de Sabino (interpretado por Renato Borghi), um rico industrial da construção civil, e sua adorada filha Glorinha (papel de Diana Bouth). Na véspera do casamento da garota, o pai recebe a visita do ginecologista da menina, Doutor Camarinha (o ator Elcio Nogueira), e é alertado que o futuro genro (o ator Daniel Alvim) foi visto beijando outro homem.
A encenação, concebida em parceria pela Bendita Trupe e pelo Teatro Promíscuo, é absolutamente fiel ao texto original e traz uma discussão irreverente e não menos oportuna sobre o falso moralismo. Em uma época em que o debate sobre o homossexualidade ganhou muita força, em grande parte devido ao posicionamento do presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), o espetáculo tem o mérito de trazer o espírito transgressor de Nelson Rodrigues, devidamente compreendido, para a discussão do tema e servir de resposta.
Johana Albuquerque flertou com o espírito de cabaré – e para isso o cenário criado por André Cortez, formado por cortinas, é muito eficaz – e escapou completamente do melodramático. Os personagens fogem do realismo, são exagerados e trilham sem medo o caminho da caricatura. Da mesma forma, as cenas de sexo e nudez se fazem presente sem gratuidade, mas são capazes de aumentar o espanto do espectador. Nessa estética perigosa, o elenco de sete atores apresenta uma sintonia que adequa-se à proposta. Escalada às pressas para substituir Deborah Secco, que se afastou do projeto um mês antes do lançamento, Diana Bouth convence como Glorinha e o fato de ser pouco conhecida colabora para jogar luz sobre seus colegas e, principalmente, sobre os tipos masculinos. Renato Borghi, como sempre, não economiza em sua caracterização e, justamente por investir nesse excesso, reforça a personificação dos tipos de Nelson Rodrigues na proposta de Johana.
Entre os coadjuvantes, Maurício de Barros, Vera Bonilha e a surpreendente Regina França também adequam-se à sintonia em registros diversos. O grande destaque, no entanto, é o ator Daniel Alvim, que se aproveita de estereótipos opostos para construir Téofilo, o noivo gay, e Antônio Carlos, o garotão de praia que seduz Glorinha, e consegue a mais bem-sucedida fusão entre os objetivos da direção e a essência das criaturas de Nelson Rodrigues. E o melhor do conjunto é ver que ainda hoje o dramaturgo é capaz de chocar e servir de imagem e provocação para questões nebulosas da sociedade.