“Bichado” expõe as cobaias da realidade
Em uma linha desafiadora, o diretor Zé Henrique de Paula e o Núcleo Experimental surpreendem com a terceira parte da chamada “Trilogia da Guerra”. Depois de dar início à abordagem do universo bélico em “As Troianas — Vozes da Guerra” (2009) e “Casa/Cabul” (2011), o encenador radicaliza ao trilhar uma corrente oposta a de outras […]
Em uma linha desafiadora, o diretor Zé Henrique de Paula e o Núcleo Experimental surpreendem com a terceira parte da chamada “Trilogia da Guerra”. Depois de dar início à abordagem do universo bélico em “As Troianas — Vozes da Guerra” (2009) e “Casa/Cabul” (2011), o encenador radicaliza ao trilhar uma corrente oposta a de outras montagens que o tornaram conhecido. Escrita pelo americano Tracy Letts, a tragicomédia “Bichado” propõe uma visão muito mais social e psicológica da forma como a Guerra do Golfo afetou a vida e a mentalidade do povo americano na década de 90.
Não à toa a ação inteira se passa em um quarto de hotel. O realismo do cenário contrasta com a instabilidade da ação e também do estado de espírito dos personagens. É ali que vive a garçonete Agnes (construída com vigor pela atriz Einat Falbel), entre copos de vodca e carreiras de cocaína, vigiada por um cartaz do filme “Pulp Fiction” na parede. Perseguida pelo ex-marido (o ator Alexandre Freitas) e carregando o trauma de ter perdido um filho, ela inicia um relacionamento com um veterano da Guerra do Golfo (papel do talentoso Paulo Cruz, que dosa perturbação e certa ingenuidade). O rapaz, obcecado por insetos, afirma que foi cobaia do Exército americano e desenvolve uma crescente paranoia. Tem a certeza de que está “bichado” e, em um momento em que se safou temporariamente da vigilância, tenta se livrar da contaminação.
A dramaturgia construída por Tracy Letts – autor até então inédito no Brasil e também responsável pelo cultuado “August: Osage County” (2008) – é a grande força do espetáculo. Cada palavra dita ali pelo competente elenco, completado por Adriana Alencar e Rodrigo Caetano, tem seu valor e faz o espectador pensar no quanto essas questões tão recentes transformaram o comportamento das pessoas. Todos se tornaram mais individualistas e mecânicos sem se dar conta. E, mergulhado nessa proposta, Zé Henrique de Paula faz um espetáculo diferente do resto de sua profícua obra. Nada se identifica de “Senhora dos Afogados” (2007), “Cândida” (2008) ou “Side Man” (2010), regidas com mais exatidão e perfeccionismo. Parente um pouco mais próximo de “O Livro dos Monstros Guardados” (2009), “Bichado” ganha vida pela sujeira de seus tipos e pelas interpretações carregadas. Mesmo que a encenação se torne um tanto arrastada e preocupada com o efeito visual, o espetáculo assume uma confusão em sua própria concepção capaz de aproximá-lo dos temas retratados.
Uma casa para o Núcleo Experimental
No início de março, o Núcleo Experimental inaugurou seu próprio cantinho. Por pelo menos dois anos o grupo não precisa se preocupar em disputar pautas nos teatros da cidade e nem pagar um aluguel muitas vezes fora da realidade para o retorno de público. Conquistar datas na agenda das unidades do Sesc equivale a ganhar na loteria. É para poucos. Mas ninguém vive apenas de satisfação e autonomia artística. O Teatro do Núcleo Experimental – com seus 50 e poucos lugares – precisa ser descoberto pelo público. E em se tratando de um diretor como Zé Henrique de Paula, que sempre valorizou espetáculos capazes de satisfazer espectadores variados, ter um espaço pode ser um sonho realizado. Só que também uma forma de ficar à margem de um circuito onde ele já deveria estar com um lugar minimamente garantido.
Ok… Isso não existe no vasto e “democrático” teatro paulistano. A maioria dos grupos quer sua sede. Muitos deles vão reformando antigos casarões, lapidando depósitos, adaptando garagens e apresentando peças para quem aparece por lá. O Núcleo Experimental (e Zé Henrique) não quer apresentar peças para quem estiver cruzando a rua e decidir entrar. Até porque pouca gente circula pela Rua Barra Funda, na altura do número 637, quase lá na Pacaembu. Nem pretende – assim espero – ficar restrito ao cotidiano de sua vizinhança. Por isso, público, vá até lá. Vale a pena. Tem um amplo estacionamento na frente ou – para os mais ousados – é fácil parar na rua. Os banheiros são limpíssimos e elegantes. O simpático ambiente ainda traz um café com ótimas pedidas. Quichês, esfihas, espanadas e tostex saem por R$ 4,00. Para quem gosta de doces, torta de chocolate com frutas vermelhas, cheesecake de goiaba, rocambole e bolo de brigadeiro. Tudo por R$ 5,50. Como é óbvio também rolam cafés, capuccinos, chás e até cervejas. Bem geladas, por sinal. Mas de que vale tudo isso? O que conta é o teatro. E como normalmente tudo o que o Núcleo Experimental faz, faz muito bem feito, agora, o público (o de Zé Henrique pelo menos) precisa aparecer. Ah… As cadeiras não são lá muito confortáveis. Bem… Quando a peça é boa isso vira um detalhe para quem gosta de teatro. Já para quem não gosta muito…
https://vejasp.abril.com.br/teatro/teatro-do-nucleo-experimental