“Meu personagem principal é sempre São Paulo”, afirma Cristiano Burlan
Diretor apresenta seu novo filme, 'A Mãe', no 50º Festival de Gramado; Marcélia Cartaxo interpreta uma mãe que busca pelo filho desaparecido na capital
A Mãe, dirigido por Cristiano Burlan, está em cartaz nos cinemas. Com Marcélia Cartaxo como a protagonista do título, o filme se passa em São Paulo e acende mais um alerta sobre a violência policial nas áreas periféricas da cidade.
Na trama, Maria é uma nordestina que vive na periferia de São Paulo e trabalha como camelô no centro. Ao chegar em casa, ela não encontra seu filho, Valdo (Dustin Farias). Depois de procurar pelo rapaz pela vizinhança, decide ir atrás do traficante local, que a informa que ele foi assassinado pela Polícia Militar. Maria não se conforma e busca ajuda e respostas.
À Vejinha, o cineasta fala sobre seu novo projeto. Ele já dirigiu quase 20 filmes, como os documentários Mataram Meu Irmão e Elegia de um Crime.
De onde veio a ideia para o filme?
Vem de um lugar pessoal. Minha mãe teve um filho assassinado por uma quadrilha comandada por policiais militares do Capão Redondo com sete tiros nas costas, em 2001. Depois, eu fiz uma série de documentários sobre as mortes de meu irmão, meu pai e minha mãe. A inspiração veio dali, mas também veio muito do contato com a Débora Silva, do movimento Mães de Maio, que surgiu a partir dos Crimes de Maio, onda de assassinatos que ocorreu em 2006 e matou centenas de civis.
Há diversos curtas e documentários sobre Mães de Maio e Crimes de Maio. Por que você acha que o cinema é a ferramenta que mais fala sobre o assunto até hoje?
O terrorismo de Estado é institucionalizado no país desde a sua formação. Essas notícias passam apenas em jornais sensacionalistas, que transformam vidas em números, em estatística. É superficial. Você desumaniza a vítima, e isso sempre me incomodou muito – especialmente por eu ter sido atravessado por tragédias.
O que você espera que o seu filme alcance após ser exibido em Gramado e, posteriormente, lançado no cinema?
Eu não acredito em cinema panfletário. Existe uma frase do Orson Welles que me toca muito: “O filme, quando se torna simples veículo de mensagem ideológica, política ou social, já nasceu morto”. Eu tento fazer com que ele seja um filme. Tem que ter um engendramento entre discurso político, qualidades e elementos cinematográficos. Este foi um filme difícil de fazer porque é o primeiro que fiz com o recurso mais baixo na Ancine, com baixo orçamento. É uma história para se filmar em oito semanas, mas filmamos em quatro. Além disso, estou acostumado a trabalhar com equipes menores, mas tinham momentos no set em que haviam 80 pessoas. Foi uma escola de cinema.
Sobre estar em Gramado, percebo que há uma mudança no direcionamento da curadoria. Há até piadas que aqui se transformou em Tiradentes ou Brasília [festivais mais independentes]. Mas acho que a curadoria é reflexo do nosso momento neste país. Ao mesmo tempo, há o público comum. Na estreia, um dos nossos atores tinha o número 13 na camiseta e nos vaiaram, mas foi uma experiência muito pulsante.
Sobre Marcélia Cartaxo, como se deu o contato até ela se tornar a protagonista do filme?
Ela tem um rosto, uma dimensão humana que sempre foi muito tocante para mim. Não tem a ver com naturalidade, mas sim a ver com fluidez. Eu escrevi o roteiro com Ana Carolina Marinho, atriz e roteirista, e deixei claro para ela que eu só conseguiria fazer o filme se a Marcélia aceitasse. Ela é a minha mãe – consigo ver isso no rosto dela. Foi um embate muito interessante entre ator e diretor, mas foi um processo que o filme pedia. Foi uma longa viagem e ela é um ser humano incrível.
São Paulo tem papel essencial e característico no filme. Como foi transmitir a cidade como ela é no filme?
Eu nasci em Porto Alegre, mas sou paulistano e Corinthiano. Tenho uma relação de amor e ódio, pois a cidade me deu e tirou muita coisa. Já fiz muitos filmes e o personagem principal sempre é a cidade. Talvez seja o personagem que eu mais filmei até agora. É uma profunda paixão, um profundo ódio. A palavra “musa” está fora de moda, mas talvez sejam os meus demônios ali, na tela. Eu já fui metalúrgico, já trabalhei em obra, fui garçom… eu vivi essa cidade de maneira intensa. As contradições de São Paulo são muitas. É uma cidade feia, mas bela. É fácil encontrar beleza num final de tarde, mas encontrar beleza no centro de SP? É difícil. Mas ela ainda é bonita. Há poesia.
A Mãe ainda traz no elenco Helena Ignez, Henrique Zanoni, Ana Carolina Marinho, Kiko Marques, Hélio Cícero, Mawusi Tulani, Che Mois, Tuna Dwek e Carlos Meceni.
Publicado em VEJA São Paulo de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815