Casa Campinarana: uma construção sustentável no meio da Amazônia
O arquiteto belga Laurent Troost acumula experiências globais: após assinar projetos na Europa e em Dubai, ele mora e trabalha no Brasil desde 2008
Laurent Troost nunca tinha ouvido falar sobre a cidade de Manaus quando veio ao Brasil pela primeira vez em 2006. O que era somente uma viagem a passeio, para visitar os familiares da esposa brasileira, acabou o impressionando: “Eu tinha encerrado uma temporada que passei em Dubai, trabalhando para o Rem Koolhaas. Naquela época, todo mundo falava de Dubai como a cidade que mais crescia no mundo e lá se via muitas gruas e canteiros de obras pelas ruas. Quando vim para Manaus, também me deparei com uma grande quantidade de gruas, de obras. Era algo muito diferente e onde parecia haver trabalho e oportunidade para arquitetos”, relembra. Dois anos depois, o casal se mudou para o Brasil e passou um tempo na região sudeste antes de fixar residência na capital amazonense.
De lá para cá, inúmeros projetos e estudos foram realizados por Laurent, com base nos aprendizados e nas particularidades da arquitetura brasileira e da região amazônica, e também na experiência adquirida nos oito anos que exerceu o cargo de diretor de planejamento urbano da cidade de Manaus.
“A primeira diferença que senti no Brasil, que pode ser até uma coisa muito óbvia, é a diferença entre o hemisfério norte e sul. O sol aqui está ao norte, principalmente na área de São Paulo. Mas quando você trabalha em Manaus, que está a 3 graus de latitude sul do Equador, você tem um sol que fica seis meses ao norte e seis meses ao sul. O que modifica totalmente a percepção, o entendimento e os conceitos arquitetônicos em relação ao que eu estava acostumado na Europa”, pontua.
A questão geográfica também influencia a logística dos projetos realizados na região, já que a área é mais isolada geograficamente, o que dificulta o acesso a diversos tipos de materiais. “Temos sempre o desafio de pensar em ser sustentável na forma de trabalhar e de usar elementos locais ou que tenham uma linha de logística bem estabelecida, por conta da proximidade da fonte dos materiais”, explica o arquiteto.
A Casa Campinarana
Unir essa expertise local com a experiência profissional adquirida em projetos de diversas naturezas foi essencial para o projeto da Casa Campinarana – o nome vem do tipo da ecorregião amazônica caracterizada por árvores de pequeno porte, com solo raso e argiloso. O projeto, assinado pelo escritório comandado por Laurent Troost, em um condomínio fechado em Manaus se iniciou a partir de um pedido especial do cliente: ele não queria que nenhuma árvore fosse derrubada.
“O terreno de 20 x 40 m possuía árvores no fundo e na frente, com um descampado no meio. Resolvemos, então, construir dois pavimentos nesse centro para oferecer a melhor fachada para o sol nascente e poente”, explica. O bloco longilíneo recebe mais insolação e abriga os cômodos funcionais como lavanderia, garagem e piscina, enquanto a parte social e íntima ocupa o volume transversal. A construção é toda elevada sobre pilotis, o que deixa acessível a parte de infraestrutura no solo e dispensou mudanças na topografia do terreno, diminuindo o impacto na natureza.
“A questão ambiental é muito presente nos meus projetos. Manaus teve vários nomes nessa área, como o Severiano Mario Porto, que, desde os anos 1980, já fazia coisas bem estruturadas nessa arquitetura que hoje é chamada de biofilia, sustentável, eco, verde… Há várias nomenclaturas. Isso na mesma época que o Lelé [João Filgueiras Lima]. Acompanho muito também o trabalho do Roberto Moita”, enumera.
Na Campinarana, a tipologia clássica foi invertida em seus 366 m²: o térreo é composto pelos quartos e escritório. O andar superior é aberto e a parte onde está a sala é refrigerada e cercada por panos de vidro, que integram ou isolam o ambiente do exterior. Somente o bloco central foi coberto – a solução foi adotada para não se retirar nenhuma árvore mais alta do terreno. Aqui, a natureza se faz tão presente que não é incomum a família de moradores receber visitas de animais nativos, além de acompanhar de forma privilegiada e imersiva as transformações da flora amazônica.
Telhado sustentável
O telhado do volume transversal principal é quase um projeto à parte: reinterpretando de forma contemporânea os modelos coloniais, é composto por oito águas em dois níveis separados, o que permite a fruição dos ventos e a criação de um colchão de ar, protegendo o conforto térmico do pavimento superior. Foi montado de forma independente da casa, o que possibilita que o telhado dilate em função da temperatura e da insolação sem comprometer nenhuma estrutura. Sua largura reduzida foi planejada para garantir a ventilação cruzada em todos os ambientes.
Nas laterais, duas platibandas invertidas (que funcionam quase como beirais “dobrados”) protegem a casa do sol equatorial e ainda provêm privacidade, já que a construção não possui muros ou cercas.
Tanto a parte superior como a interna do telhado foram revestidas de corten, um aço de baixa manutenção que se patina com o tempo, criando uma camada de proteção. No meio dessas duas camadas, há um isolante térmico. A escolha do material também foi influenciada pela mão-de-obra especializada local: o escritório contratou um profissional que trabalha nos estaleiros de Manaus para montar a estrutura. E a cor vermelha faz uma alusão ao solo argiloso da Amazônia.
No sentido longitudinal, há calhas que terminam em tubos de queda nos quatro cantos da cobertura: a água da chuva é recolhida e armazenada em uma cisterna subterrânea. Por uma sugestão do cliente, um sistema diferente foi criado para reutilizar essa água: o líquido é bombeado de volta para o telhado, onde, em contato com o aço quente, resfria o material.
A arquitetura no Brasil
A Campinarana acumula prêmios de arquitetura no mundo todo, como o “DEZEEN AWARD 2019” e o “Metal Architecture Design Award 2019”. No entanto, trabalhar no Brasil está longe de ser uma tarefa fácil para Laurent. “A adaptação mais desafiadora é projetar com recursos escassos e num país onde, apesar de ter uma forte identidade arquitetônica, os contratos são menores em termos financeiros. Isso tem um impacto sobre como você tem que organizar seu trabalho e também influencia em como você deve enxergar oportunidades de propor projetos que sejam economicamente viáveis de se construir”, analisa.
Parte desse desafio foi cumprido junto ao setor público: por oito anos, Laurent exerceu o cargo de diretor de planejamento urbano da cidade de Manaus e, além das atribuições rotineiras de processos e licenciamentos, também desenvolveu e implementou diversos projetos urbanísticos. “Conseguimos aprovar planejamentos urbanos que podem ter um impacto muito positivo no futuro da cidade. É algo muito difícil de se fazer no setor público e espero que as futuras gestões deem continuidade”, explica. Um dos trabalhos mais importantes foi o projeto de requalificação do centro histórico de Manaus.
“As áreas centrais, que não eram muito fortes no Brasil, em termos de vivacidade e urbanidade, com essa crise sanitária, são as primeiras que estão sofrendo. A gente vê os centros históricos mais esvaziados ainda. Mas eu não tenho dúvidas de que isso é uma fase e que, no futuro, iremos aproveitar essas infraestruturas centrais e revitalizá-las. É uma questão de tempo. Eu estou muito confiante e esperançoso”, prevê. Apesar de ter deixado o cargo no fim do ano passado, Laurent continua seus esforços: hoje, ele colabora com o Banco Mundial como consultor de questões urbanas e amazônicas. “Espero trazer mais recursos e mais força à Amazônia”, conclui.
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