Livro de fotógrafo paulistano traz imagens da guerra de Sarajevo
Fernando Costa Netto conta a experiência de cobrir guerra, com perrengues, tensão constante e risco de ser baleado
“Sarajevo cheirava queimado, principalmente no inverno. As pessoas não tinham calefação, então queimavam móveis para se esquentar. Imagina o termômetro marcando 20 graus negativos e você sem janela? Os bombardeios tinham estourado os vidros”, rememora o fotógrafo paulistano Fernando Costa Netto, 61 anos. Em 1993 e 1994, ele foi à capital da Bósnia e Herzegovina cobrir o cerco militar imposto à cidade por tropas sérvias, depois que o país se declarou independente. Bósnia e Sérvia compunham com duas outras repúblicas a desaparecida Iugoslávia. Croácia e Eslovênia já haviam se rebelado. Vinte e cinco anos depois do fim do conflito, que se estendeu de 1992 a 1996, Netto retorna àqueles tempos com o livro Maybe Airlines (Garoa Livros; 100,00 reais).
O título da publicação (em português, algo como “Talvez linhas aéreas”) traz um primeiro dado sobre a situação em Sarajevo. “Para chegar lá, você tinha de pegar ‘carona’ em um avião da ONU, que partia ou da cidade de Split, na Croácia, ou de Ancona, na Itália. Além de funcionários da instituição, havia itens de ajuda humanitária. O embarque para jornalistas e fotógrafos não era garantido”, explica Netto, que teve certa facilidade no acesso, já que depois de só quatro dias de espera pegou o voo em solo italiano rumo a Sarajevo.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
Sem vínculo com um grande veículo de imprensa, ele teve de se virar. “Fui em 1993, pela primeira vez, no verão deles. Tinha 400 dólares no bolso, o que é muito pouco quando você fala em cobertura de guerra. Não tinha como contratar tradutor nem motorista local para me guiar. Perguntando nas ruas, encontrei uma família que me alugou um sofá”, detalha o profissional, que, de acordo com as condições do conflito e orçamento, definiu um limite para sua estadia: “Não tinha água lá, decidi ficar enquanto conseguisse aguentar o meu cheiro sem tomar banho”.
A pé, então, Netto acessava, aos poucos, os alvos do cerco militar. O prédio da Biblioteca Nacional, construído em 1945, foi destruído por um incêndio em 1992, provocado por um bombardeio das forças sérvias. O acervo também foi atingido. Somente 22 anos depois, o lugar seria reinaugurado. Crianças, com olhares de angústia e medo, posavam tensas à época. Tinham mais do que razão: dentre os 11 541 civis mortos no conflito, 1 601 ainda viviam a infância.
“No conjunto produzido por Fernando, as fotos de pessoas buscando lenha ou água me tocam muito. São atividades que não identificamos como contemporâneas e que também não imaginaríamos ver em cidades europeias em pleno século XX”, aponta o jornalista Leão Serva, 61 anos, que escreve um dos textos presentes na publicação. “A violência no livro se dá por ecos. Você não vê quem deu o tiro no automóvel e quando, mas, sim, a carcaça depois, cheia de balas”, exemplifica ele, que é autor do recém-lançado A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra (leia mais no quadro abaixo). A publicação analisa fotos de conflitos armados e tenta entender a comoção que elas provocam.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
De sua ida à capital da Bósnia, em 1992, como correspondente da Folha de S. Paulo, Serva traz a memória do perigo iminente: “A gente andava se escondendo atrás dos prédios. Quando ia atravessar a rua, contava até dez e corria. Os atiradores sérvios estavam escondidos nas montanhas que cercavam a cidade, viam tudo e podiam disparar a qualquer hora”. Essa violência latente, se feitas ressalvas de tempo, espaço e tropas, já acompanhava Netto antes: “Não tenho traumas da guerra. Se tivesse, seria da violência de São Paulo entre os anos de 1997 e 2000, quando ocorriam noventa chacinas por dia”, desabafa o fotógrafo, que nos impele a olhar também para as Sarajevos brasileiras.
Para dissecar uma imagem de conflito
O jornalista Leão Serva, que cobriu conflitos armados na Somália e Bósnia, é o autor do livro A Fórmula da Emoção na Fotografia de Guerra (Edições Sesc; 69,00 reais). O título é um desdobramento de sua tese de doutorado, em que tenta explicar os motivos de as imagens de guerra causarem tanta comoção. Afora o óbvio sofrimento que transmitem, gestos e situações vistos em cenas contemporâneas remeteriam, então, a imagens antigas, como a retratada na pintura O Massacre dos Inocentes (1634), do francês Nicolas Poussin (1594-1665). Grosso modo, o público é tomado por uma espécie de conexão com uma dor recorrente.
+Assine a Vejinha a partir de 8,90.
Publicado em VEJA São Paulo de 21 de abril de 2021, edição nº 2734