Vila Reencontro fomenta esperança em ex-moradores de rua
Objetivo de projeto que abriga inicialmente 38 famílias é de que eles retomem independência e lar definitivo
Um dos maiores orgulhos do vendedor desempregado Rafael Cortez, de 31 anos, é abrir a porta da sua casa e mostrar o banheiro que apenas ele, a mulher grávida e a filha, Sophie, usam. Sua família, que em fevereiro deste ano ganhará um quarto integrante, Henry, é uma das 38 que ocupam as microcasas da Vila Reencontro, um projeto-piloto da prefeitura de São Paulo que visa dar teto a famílias em situação de rua. “Ter um banheirinho só nosso é um luxo, é muito bom”, afirma Cortez. Antes de se mudar para a vila, eles estavam em um centro de acolhida, onde o uso do banheiro é coletivo e itens como geladeira são de uso compartilhado. Agora, eles dispõem de um espaço só para eles de 18 metros quadrados dividido por quarto, banheiro, geladeira, torneira, pia e um fogão com duas bocas.
De vassoura em punho, um dos vizinhos de Rafael, Eduardo Severino Silvestre da Silva, de 30 anos, varre as folhas das árvores caídas no chão perto de sua casa. Em seguida, tira as roupas do varal, as coloca em cima da cama e logo sai para levar as duas filhas para o playground enquanto a mulher, Aline, de 34 anos, ajuda a distribuir os alimentos na cozinha comunitária para os moradores. “Aqui eu voltei a saber o que é a sensação de ter uma casa. A vida tem sido ótima, mas eu não quero acostumar.”
Com um misto de sorrido nos lábios e olhos marejados, Rogéria Alves de Andrade, de 43 anos, lembra do dia em que uma assistente social a avisou de que ela e seus três filhos foram escolhidos para ocupar uma das microcasas. “Quase não acreditei.” Ela afirma que seu maior medo não era ficar sem um teto, mas passar fome. Agora, ela e seus três filhos recebem quatro refeições ao dia, afastando o que tanto ela temia. Em comum, Cortez, Silva e Rogéria, além de outros moradores da Vila Reencontro, são pessoas que tinham emprego e sustentavam as suas famílias. Com o desemprego durante a pandemia de Covid-19, se viram sem condições de manter o teto onde moravam. Alguns perderam literalmente tudo, outros foram para as ruas com suas famílias e alguns procuraram atendimentos em serviços sociais da prefeitura para não dormirem ao relento.
Segundo o secretário de Assistência Social, Carlos Bezerra Júnior, a criação da vila foi feita justamente para atender esse perfil de famílias (no entanto, uma das críticas ao projeto é que as moradias para esse público deveriam ser espalhadas, não concentradas, para que os moradores não sejam estigmatizados). A escolha dos que estão morando na Vila Reencontro levou em conta, entre outros aspectos, aqueles que moravam com crianças que estão na primeira infância (de 0 a 6 anos de idade) e que estavam há pouco tempo em situação de rua. “Aqueles com menor tempo (nas ruas) têm as melhores condições de reinserção.”
Pelos cálculos da prefeitura, das cerca de 31 000 pessoas que vivem nas ruas, 5 200 são famílias inteiras. Apesar de numericamente as 38 casas da Vila Reencontro, aberta no fim de dezembro, serem pouco ante o gigante problema, trouxeram esperança para os moradores selecionados, que poderão ficar até dois anos residindo nas casas. No que depender do entusiasmo de alguns deles, como de Silva e Cortez, não será necessário todo esse tempo. “Vou reativar minha MEI (inscrição como microempreendedor individual) e logo vou voltar a trabalhar como marido de aluguel”, diz Silva. Ao ser questionado, Cortez aponta o dedo para o Shopping D, vizinho à vila, e dispara: “Você ainda vai me ver trabalhando lá. Logo consigo me erguer de novo e dou espaço para outro”, afirma. O terreno de 30 000 metros quadrados da Vila Reencontro terá capacidade para 270 casas modulares e até 1 080 pessoas. A segunda unidade é a da Ladeira da Memória, com capacidade para quarenta microcasas, prevista para abrir ainda em janeiro. Até o fim de 2024, a meta é erguer um total de 2 000 unidades.
Moradia primeiro
O projeto da Vila Reencontro é baseado no conceito Housing First (moradia primeiro), criado pelo psicólogo americano Sam Tsemberis. Em resumo, ele preconiza que oferecer um teto é o primeiro passo para que a pessoa conquiste outros direitos sociais. A vila nasceu após visitas que o secretário de Assistência Social de São Paulo, Carlos Bezerra Júnior, fez às cidades de Toronto e Vancouver, no Canadá. As microcasas paulistanas têm capacidade para abrigar até quatro pessoas cada uma e são feitas em cima de estruturas metálicas revestidas com material termoacústico, que protege de calor, frio e barulho. Cada uma tem banheiro individual e é dotada de camas, geladeira, fogão de duas bocas, guarda-roupas e wi-fi. Os moradores não pagam nada para morar, porém, precisam respeitar algumas regras, como não beber e chegar antes das 22h.
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2826