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Os médicos do Samu com mais de 60 anos que não saíram das ruas

Odair dos Santos e Thadeu Cascelli assinaram termo de responsabilidade para seguir na linha de frente mesmo sendo grupo de risco para o novo coronavírus

Por Pedro Carvalho e Yan Boechat
Atualizado em 13 jul 2020, 15h09 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00

Chovia fino em São Paulo às 17h20 de terça-feira (2). Na base do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) do bairro do Mandaqui, na Zona Norte, o médico Odair dos Santos, de 62 anos, se paramentava para o primeiro atendimento do plantão: uma senhora de 89 anos, com suspeita de ter Covid-19, moradora de um sobrado na Vila Guilherme, a dez minutos dali. Além de máscara, avental, óculos de proteção e touca descartável, ele vestia três pares de luvas sobrepostas. “Vou tirando uma após a outra, como cascas de cebola, conforme se contaminam. Assim não perco tempo.”

Dos 153 médicos do Samu na cidade, oito têm mais de 60 anos e pertencem ao grupo de risco do novo coronavírus. Eles foram deslocados para a retaguarda desde março — ou seja, atuam na central, no Bom Retiro, onde ajudam a priorizar a fila de atendimentos, definem as equipes das ambulâncias e orientam os usuários por telefone. Mas dois deles, após assinarem um termo de responsabilidade, optaram por seguir na linha de frente das ocorrências: Odair e Thadeu Cascelli, de 62 anos.

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Nascido e criado na Vila Maria, Odair trabalha no Samu desde 2010. Antes, atuou por 24 anos no pronto-socorro e nas salas de cirurgia do Hospital Heliópolis, na Zona Sul. Thadeu, morador de Osasco, é ainda mais antigo no serviço de urgência. Em 1999, entrou para a equipe do antigo Atendimento Pré-Hospitalar (APH), um embrião do sistema atual, criado em 2003. “Sou do Samu antes de existir o Samu”, brinca. Em comum, eles dividem a paixão pela rotina nas ruas. “Gosto do contato com o paciente. De olhar as pessoas, pôr a mão nelas, conhecê-las”, diz Odair. “Se tenho medo de ser contaminado? Sim. Todos os dias. Mas sou médico, né?”, reflete.

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(Foto: Alexandre Battibugli/Veja SP)

Desde o início da pandemia, 331 profissionais do Samu foram afastados por suspeita de Covid-19. Os responsáveis pelo sistema calculam que 30% tinham de fato a doença. No dia 5 de abril, o médico Paulo Palazzo, de 56 anos, se tornou a primeira vítima do coronavírus no serviço de urgência (até o momento, é a única). Antes de ser médico, Palazzo era recepcionista no Hospital São Paulo. Tentou por cinco anos entrar na faculdade. Ao concluí-la, não teve dinheiro para participar da festa de formatura. “A medicina sempre foi um sonho para ele. O Palazzo lutou muito para entrar para a profissão”, relembra Francis Fuji, diretor médico do Samu. “A morte dele serviu como um alerta para nós. Percebemos que o vírus era mesmo potencialmente letal e redobramos os cuidados nos atendimentos”, conta.

A rotina do Samu em São Paulo foi significativamente alterada na pandemia. Ele passou a receber menos telefonemas: foram 105.416 em maio, contra 138.438 no mesmo mês do ano passado. “As pessoas estão com medo de ser levadas aos hospitais, portanto nos acionam menos”, afirma Maísa Ferreira dos Santos, coordenadora do serviço. Ao mesmo tempo, o número de atendimentos a residências aumentou: 16.109 no último mês, contra 14.810 em maio de 2019. Isso porque a quantidade de ambulâncias cresceu na crise atual: passou de setenta para noventa, em média, nos plantões diurnos. As ocorrências ligadas a problemas respiratórios dispararam: foram de 1.734 para 3.977, na comparação entre os mesmos meses (e, nos relatórios internos, esses atendimentos foram renomeados como “problemas respiratórios e pandemia”). O uso de máscaras saltou de quase zero para perto de 9.000 por mês. Mas a principal mudança aconteceu após o feriado de Páscoa, quando um decreto estadual determinou que o Samu passaria a verificar e a emitir atestados de óbito. “Quando soube que teríamos de ensacar corpos, chorei o fim de semana inteiro. No dia seguinte, coloquei meu avental de enfermeira e fui fazer três atendimentos desse tipo. Como gestora, precisava entender como esses processos aconteciam na prática, para orientar as equipes”, afirma Maísa, que tem 60 anos. “A principal lição é que precisaríamos dar tempo suficiente às famílias para se despedirem das vítimas, que seguiriam direto para os cemitérios”, ela conta. De lá para cá, o Samu emitiu 606 atestados de óbito na capital paulista.

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Paciente com suspeita de Covid-19 na Vila Guilherme (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Além de Odair e Thadeu, outros profissionais com mais de 60 anos seguem em atividade no Samu — não estão nas ruas, mas se arriscam para permanecer na ativa durante este período, ainda que na retaguarda. São quatro funcionários da sede administrativa, seis auxiliares de enfermagem e cinco motoristas de ambulância. “Trabalho no serviço desde 1986, nos tempos da APH. Nunca vi tantos casos de problemas respiratórios como agora”, diz José Geraldo Conceição, 71, que no momento organiza os atendimentos na central.

Dentro do sobrado da Vila Guilherme, no plantão da terça-feira, Odair pressiona a barriga da paciente e ela acusa uma dor. “Está doendo? Briga com ela (e aponta para a filha da senhora), foi ela que me chamou!”, o médico brinca. Na verdade, não era brincadeira. “Faço isso para ver a reação da paciente. É uma maneira de avaliar o nível de lucidez dela”, ele ensina. A experiência, sem dúvida, faz diferença nesse tipo de serviço.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 10 de junho de 2020, edição nº 2690.  

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