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Detalhes exclusivos sobre a quebra da Unimed Paulistana

Problemas de gestão e suspeitas de ilegalidades culminaram no fim do maior plano de saúde da capital e prejudicou 740 000 clientes

Por Sérgio Quintella, Ana Carolina Soares e Mauricio Xavier
Atualizado em 1 jun 2017, 16h16 - Publicado em 19 mar 2016, 00h00

Em setembro passado, o empresário José Rogério Cola tentava controlar a ansiedade às vésperas de enfrentar uma cirurgia para a retirada de um tumor maligno queestava próximo do rim esquerdo. A tensão era aliviada pelo fato de saber que seria atendido no Hospital Sírio-Libanês, uma das referências da capital, direito asseguradopor um plano de saúde de 3 000 reais mensais. Em 8 de outubro, no entanto, ao apresentar-se na recepção, recebeu um choque sem anestesia.

Seu convênio havia sido encerrado um mês antes em consequência da intervenção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na Unimed Paulistana. Diante do imprevisto, Cola teve de decidir se remarcava o procedimento em outro local indicado pela Central Nacional Unimed (que assumiu o caso) ou ficava responsável pela conta de 30 000 reais e permanecia na instituição da Bela Vista. Prestes a ser instalado na maca, preferiu a segunda opção.

No pós-operatório, mais feridas: a quimioterapia custaria 12 000 reais ao mês. Cola teve de tirar dinheiro do bolso. Hoje, paga 7 000 reais de mensalidade na SulAmérica (mais que o dobro) por um plano similar ao anterior e tenta reaver na Justiça o total de 70 000 reais gastos para se curar do câncer. “Fui tratado com absoluto descaso pela seguradora durante o processo”, reclama.

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A exemplo do empresário, cerca de 740 000 paulistanos (o equivalente a 10% da população da capital) tinham a mesma carteirinha de convênio. Essa companhia era a maior do gênero por aqui. Desde o fim do ano passado, vários clientes enfrentaram problemas sérios. Por dezenas de hospitais e consultórios pipocaram epopeias de pacientes deixados à própria sorte, que arcaram com as consequências da falta de atendimento ou gastaram com cirurgias e internações, devido ao colapso do negócio. 

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A elevação da dívida, que saltou 400% entre 2007 e 2009, chegando ao patamar de 2,5 bilhões de reais, foi a principal causa da morte da Unimed Paulistana. Documentos e depoimentos reunidos com exclusividade por VEJA SÃO PAULO mostram detalhes dos problemas que desequilibraram o caixa. A lista inclui sonegação fiscal, pagamentos suspeitos a empresas e gestão administrativa temerária, capaz de bancar uma viagem internacional milionária para corretores no períodofinanceiro mais crítico, enquanto a companhia pedia dinheiro aos próprios cooperados.

“O nível de desorganização não tem paralelo”, afirma Ana Regina Vlainich, diretorada empresa entre 2007 e 2009. Como toda integrante do sistema Unimed, a filial paulistana seguia o modelo de uma cooperativa, ou seja, além de prestarem serviços eserem pagos por isso, os médicos eram os donos da empresa. Cada um deles detinha uma cota fixa — nos últimos tempos era preciso investir 40 000 reais para entrar no “clube”.

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A crise estourou em 2 de setembro, quando a ANS decretou a alienação da carteira da seguradora, por causa de problemas de gestão. Em suma, a empresa foi forçadaa repassar seus clientes a outras operadoras. Na época, a agência reguladora estipulou que os “desabrigados” deveriam ser recebidos em até trinta dias até emoutros braços da Unimed (apesar do prefixo em comum, os negócios funcionam de modo independente), nas mesmas condições de preço, carência e cobertura que eles usufruíam na Paulistana. Isso não ocorreu de forma tão simples.

“Eu tentei trocar o plano por semanas, mas não consegui ser atendida”, conta a empregada doméstica Marize Angélica da Silva. Posteriormente, a chance de fazer a “portabilidade” ampliou-se a outras companhias do ramo, mas sem a obrigatoriedade da manutenção do preço original. Obviamente, muitos conveniados não conseguiram bancar o aumento. “Desisti e estou sem nada”, completa Marize, que não pôde prosseguir com as sessões de fisioterapia recomendadas à recuperação de uma artrite e está sem trabalhar.

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Abandonadas sem cobertura médica, muitas vítimas foram buscar socorro na Justiça. Um dos principais escritórios de advocacia do setor, o Vilhena Silva Advogados passou a atender setenta ex-clientes da Unimed Paulistana desde setembro. A maioria teve de interromper o tratamento de doenças graves, como o oncológico. “Em caso de risco de morte, nossa taxa de sucesso gira em torno de 90%”, diz a advogada Renata Vilhena Silva. “Sucesso”, no caso, significa tão somente prosseguir com o tratamento ou receber os medicamentos necessários. 

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As indenizações, que não costumam ultrapassar os 150 000 reais, servem apenas para cobrir custos básicos. E, mesmo para isso, é preciso submeter-se a uma maratona de paciência. A sentença pode demorar até cinco anos e o valor da ação sai em torno de 15 000 reais. “Por isso, nem 1% dos clientes atingidos procurou os tribunais”, calcula a advogada Rosana Chiavassa, especialista no tema. Vários deles apelaram a órgãos de proteção ao consumidor. Desde setembro, o Procon recebeu 2 376 reclamações de ex-conveniados da operadora por falta de atendimento em São Paulo.

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Após agonizar no anúncio da alienação da carteira, a Unimed Paulistana sofreu o golpe final no mês passado, com a decisão da ANS de decretar sua liquidação extrajudicial. Com isso, seu prédio administrativo, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde trabalhavam noventa funcionários, foi lacrado. Ainda hoje, não é incomum encontrar ex-clientes meio perdidos, batendo na porta de ferro em busca de informações. Os únicos que circulam por ali atualmente são o advogado Fabiano Fabri Bayarri e seus dois assistentes, indicados pela ANS.

Em meio a caixas de papelão repletas de documentos, computadores embalados, mesas e cadeiras empilhadas nos cantos das salas, eles têm a missão de realizar um levantamento dos bens (que incluem dois imóveis e um terreno) e vendê-los para liquidar as dívidas trabalhistas com os 3 500 demitidos, além de hipotecas, impostos e débitos com fornecedores. O prédio do Hospital Santa Helena, no centro, que era alugado, foi fechado em novembro. A conta vai demorar um tempo para ser concluída, mas certamente ficará acima da casa de 2,5 bilhões de reais.

A Justiça penhorou 147 milhões de reais,considerados suficientes para cobrir as rescisões trabalhistas. Mas muita gente vai permanecer à espera de dinheiro. Na lista de credores constam alguns dos principais hospitais da cidade, como o São Camilo Ipiranga (11,9 milhões de reais), o Oswaldo Cruz (27,4 milhões), além do Laboratório Fleury (2,5 milhões).

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Nos últimos anos, grande parte dos planos de saúde começou a enfrentar dificuldades. Entre as causas desse cenário de UTI financeira estão o aumento dos custos da medicina e o envelhecimento da população. Ou seja, os tratamentos ficaram mais caros e há mais pessoas acionando o serviço. Como se trata de um setor regulado pelo governo federal, as empresas nem sempre conseguem repassar a alta de gastos aos consumidores na velocidade que consideram adequada.

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Um agravante foi a judicialização da área. Pessoas cansadas de esperar passaram a garantir por liminar a realização de procedimentos mais complexos, como cirurgias. A discussão posterior sobre quem deve pagar a conta pode levar anos na Justiça, e, não raro, as decisões são favoráveis aos clientes. Diante disso, deixou de ser novidade o desaparecimento de negócios outrora considerados sólidos.

Nos últimos quinze anos, mais de 100 fecharam as portas na capital. Nesse grupo, incluem-se pelo menos três grandes — Samcil (2011), Unicor (2002) e Unimed São Paulo (2003). No caso desse último, os 500 000 usuários foram incorporados pela agora extinta Unimed Paulistana. Atualmente, há 54 cooperativas com atuação na cidade em regime de direção fiscal ou técnica — no qual um auditor da ANS passa a atuar dentro da companhia para tentar socorrer a gestão e resolver seus problemas administrativos.

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Para quem acompanhava de perto a situação da Unimed Paulistana, o desfecho catastrófico parecia inevitável. Um dos principais fatores alegados para a derrocada foi o aumento assustador da dívida tributária. Até 2008, impostos como o ISS não eram honrados. No entendimento da direção, que recorreu à Justiça para fazer valer sua tese e se defender da acusação de sonegação, os médicos já pagavam tais tarifas no que era relacionado a sua atuação. Dentro dessa lógica, a companhia deveria bancar apenas a fatia de tributos relativos à operação administrativa.

Nem essa parte, no entanto, era depositada, e nada ia parar no balanço anual. Pior: a empresa não separava o montante devido, para seu posterior recolhimento caso isso fosse determinado pelos tribunais. A farra acabou em 2008, quando a ANS começou a exigir a inclusão desse passivo na contabilidade. Isso catapultou a dívida da companhia de 277 milhões para 1,3 bilhão de reais em dois anos (veja o quadro na página 22).

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Outro motivo apontado como vilão para o déficit seria uma característica do sistema Unimed. Pelo acordo entre as cooperativas, quando uma delas atende o cliente de outra em sua jurisdição, o valor da consulta deve ser pago pela Unimed original. A isso chama-se intercâmbio. Segundo ex-dirigentes, esses depósitos costumam atrasar de forma geral. No caso da Unimed Paulistana — que realizava cerca de 30% dos atendimentos pelo sistema de intercâmbio —, a prática causou mais estragos.

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O quadro de infecção generalizada obrigou a ANS a intervir em diversas ocasiões, nomeando um auditor, entre 2007 e 2013, para vigiar a diretoria financeira. Em 2009, o órgão regulador foi mais longe e afastou o então presidente, Mário Santoro Junior, no cargo desde 2007. “Herdei um problema de gestões anteriores”, defende-se ele. Em seu lugar, assumiu o reumatologista Paulo José Leme de Barros, que um ano depois comemorava o aumento do faturamento (de 1,9 bilhão para 2,5 bilhões de reais), a marca de 1,6 milhão de clientes e prêmios como o concedido pela Ordem dos Parlamentares do Brasil por serviços prestados na área de saúde.

A festa, no entanto,durou pouco. Em 2012, a ANS agiu de outra forma na companhia, impedindo a venda de várias modalidades de plano, por problemas no atendimento e excesso de reclamações de usuários. No mesmo ano, os 2 500 médicos cooperados na época tiveram de efetuar um aporte emergencial de 90 milhões de reais para quitar dívidas.

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Isso levou a cobranças mensais que variaram de 300 a 4 000 reais ao longo de dezesseis meses, enfurecendo a tropa. “Anunciaram a decisão no meio de uma assembleia, sem aviso prévio, pegando todos de surpresa”, conta o advogado Reginaldo Ferreira Lima, responsável por uma ação coletiva em nome de 300pessoas que até hoje corre na Justiça. A medida impopular causou uma debandada de profissionais. Intervenção da ANS, explosão da dívida, fuga de médicos e pacientes insatisfeitos.

Esse era o cenário em agosto de 2014, quando a direção da empresa levou 138 corretores do mercado para uma viagem de cinco diaspela África do Sul, com direito a safáris pelas savanas e acomodações luxuosas em hotel cinco-estrelas, por 1,2 milhão de reais. A excursão alastrou mais ódio entre os cooperados, aqueles que haviam sido convocados a salvar o grupo do buraco.

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A Unimed Paulistana ainda enfrenta suspeitas mais graves. Há uma apuração em curso na 4ª Delegacia de Investigações sobre Crimes de Lavagem de Dinheiro, da Polícia Civil, que acatou denúncia enviada pelo Ministério Público (MP) a respeito de um pagamento de 18 milhões de reais a três fornecedores. A alegação é que os serviços contratados nunca foram prestados.

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Como se não bastasse, as destinatárias dos depósitos não foram encontradas e podem ser empresas-fantasma. O ex-presidente Leme não quis conceder entrevista a VEJA SÃO PAULO, mas negou as acusações em carta enviada aos integrantes da cooperativa. OMP também apura um pagamento de 60 000 reais à empresa Pedra Branca, de Ronilson Bezerra Rodrigues, ex-subsecretário da Receita Municipal e acusado de ser o chefe da “máfia do ISS” na capital. Segundo o órgão, em 2011, Rodrigues redigiu um artigo de um projeto de lei que mudou o sistema de tributação a que estavamsujeitas as operadoras de saúde.

Essa cláusula, aprovada na Câmara e sancionada pela prefeitura, ajudou a frear o crescimento da dívida fiscal da Unimed Paulistana. “Vou abrir uma ação civil pública baseada nisso”, diz o promotor Roberto Bodini. Em depoimento ao MP, o ex-subsecretário confirmou ter feito um trabalho de consultoria, mas jurou que isso não tem relação alguma com seu papel na alteração da lei.

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Mesmo com a modificação feita na Receita Municipal, a dívida total da Unimed Paulistana voltou a saltar entre 2013 e 2015, atingindo 2,5 bilhões de reais. Dessa vez, a culpa recaiu sobre o pagamento de empréstimos contraídos no mercado a juros altos. “A companhia faturava 220 milhões de reais por mês, mas 150 milhões eram usados para quitar débitos com instituições financeiras de segunda linha, com taxas de 6% ao mês”, diz o último presidente, Marcelo Nunes, que ocupou ocargo por um ano. “Como havia os outros gastos da operação, a dívida disparou.” Ele processa a ANS por suposto vazamento de informações, assim como por alegados danos morais e materiais, e pede indenização de 9,6 bilhões de reais, além da reversão da liquidação extrajudicial.

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Segundo o estatuto da companhia, o pagamento da dívida deve ser feito pelos 2 200 médicos cooperados, considerados sócios, portanto responsáveis pelos prejuízos. Se o último número divulgado fosse dividido de forma igualitária, cada profissional teria de arcar com 900 000 reais — na verdade, o valor varia de acordo com a quantidade de consultas realizadas. “Eu me sinto caminhando para o matadouro”, preocupa-se a cardiologista Berta Paula Boer.

O ex-presidente Nunes entroucom outra ação para transferir a obrigação à Unimed nacional, e um grupo uniu-se para brigar coletivamente pela causa. “Um juiz sensato vai entender que temos responsabilidade limitada”, defende o proctologista Ângelo Vattimo, presidente da recém-criada Associação dos Médicos Cooperados da UnimedPaulistana.

A possibilidade de bancar a dívida não é a única preocupação desses profissionais. Vários deles trabalharam e ficaram a ver navios. “Alguns foram forçados a vender bens para pagar contas”, afirma Vattimo. O pneumologista Renato Breviglieri está entre os prejudicados, assim como sua mulher e filho, também ex-médicos da Paulistana. “Nosso prejuízo é de 50 000 reais”, calcula.

CARTILHA DA BOA SAÚDE

Algumas dicas para não errar ao escolher o convênio

› Verifique se a empresa tem registro na ANS e se está ou já esteve sob regime de direção fiscal, o que indica problemas financeiros e/ou administrativos.

› As cláusulas e coberturas deverão estar explicadas no contrato, e nele deve constar a relação dos serviços credenciados, como hospitais, médicos e laboratórios.

› As promessas enumeradas durante a venda só têm validade se estiverem escritas. Portanto, exija que o corretor coloque todas as coberturas adicionais no papel.

› Os planos individuais e familiares têm aumento anual e por faixa etária. Cheque os preços por idade no momento da contratação para não ser surpreendido.

› Confira se a modalidade escolhida possui cobertura nacional. Há casos de abrangência apenas regional, o que deixa as mensalidades mais baratas.

› A portabilidade pode ser realizada em planos individuais, familiares ou coletivos. Para efetuá-la, o cliente precisa ficar pelo menos dois anos na mesma companhia.

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