Na Vila Formosa, sepultadores fazem um enterro a cada 24 minutos
Funcionários concursados ganham 2 000 reais por mês, passam por desgaste físico e emocional e se dizem invisíveis
No Cemitério da Vila Formosa, na Zona Leste, o maior da América Latina, enquanto uma família se despede em um funeral tão rápido quanto silencioso, outros parentes aguardam ali perto para os próximos enterros. Sem velório, as cerimônias de vítimas da Covid-19 se resumem a uma breve despedida devido ao risco de contaminação. No último dia 28 de maio, de bastante sol na capital paulista, a Vejinha acompanhou cinco sepultamentos de mortos por coronavírus em menos de meia hora, após uma van do serviço funerário levar os caixões todos de uma vez. Eles estavam em uma tenda refrigerada instalada na entrada do local. Cinco dias depois, a reportagem foi ao mesmo espaço e viu a quadra, que possuía poucas fileiras de sepulturas, estar toda ocupada. No Vila Formosa, com 667.000 metros quadrados (quase nove vezes maior que o da Consolação), no último mês, ocorreram 1.891 sepultamentos, uma média de 61 por dia e 2,5 por hora — no mesmo período de 2019, foram 1 027 —, uma alta de 84%. Nenhuma outra necrópole paulistana recebeu tantos corpos. Na cidade, foram realizados 10000 enterros a mais, de janeiro a maio de 2020, na comparação com o mesmo período do ano passado
A ampla elevação no número de óbitos na capital paulista jogou luz sobre uma parcela de trabalhadores muitas vezes desprezada: os sepultadores. “Mas pode me chamar de coveiro, sou um dos poucos que não ligam para esse apelido. Somos invisíveis para muita gente”, afirma Wilker Paes, conhecido como Zeca, 45, oito deles trabalhando no serviço funerário. Seis vezes por semana ele sai de casa, no Jardim Japão, Zona Norte, e percorre de ônibus 30 quilômetros para chegar ao trabalho. Na volta, mais 30, que, juntos, consomem cinco horas de seu dia, fora o turno de oito horas (mais uma de almoço). “Entrei no serviço público por causa da estabilidade, vou morrer coveiro, mas não é todo mundo que aguenta o trabalho, não. Além do desgaste físico, tem o emocional dos enterros e das exumações. Vi muito colega entrar em depressão.” As exumações, que ocorrem a partir de três anos depois da morte, servem para abrir espaço para novos sepultamentos. Elas podem (ou não) ser acompanhadas por um parente. “Uma vez uma mãe acompanhou uma exumação que eu fiz e, após dar um beijo no crânio, quis levar embora os ossos do filho. Tivemos de explicar com todo o carinho que os restos mortais dele deveriam ficar aqui ou ser cremados. Tem gente que não aguenta.”
Mais velho entre os funcionários do Vila Formosa, Wanderley Magnési, 55, começou no local aos 21 anos. Dos 34 anos como sepultador, guarda recordações trágicas e cômicas. Recém-chegado ao trabalho, em 1987, foi surpreendido por um colega que encontrou durante a habitual limpeza uma mala enterrada e começou a gritar. “Era um malote de dinheiro, mas as notas estavam estragadas”, afirma. “Aquele dinheiro, se prestasse, teria resolvido a vida de todos nós”, ri. O tom da conversa muda quando ele se lembra de ter trabalhado, em outubro de 1992, no enterro de detentos do antigo Carandiru. “Eram muitos corpos em cada vala.” Enterros de detentos sem identificação também eram comuns décadas atrás.
O Vila Formosa, de tão grande (possui quase o tamanho do Parque Villa-Lobos), é dividido em duas partes. Na primeira, onde trabalham Zeca e Wanderley, havia antes da pandemia apenas treze sepultadores. Há dois meses eles ganharam a companhia de outros quinze trabalhadores temporários, que ajudam na rotina diária do local. Na cidade, os terceirizados chegam a 200, a um custo de 9 milhões de reais por seis meses. Um deles, de 25 anos, que não quis ser identificado, afirma que a escolha do trabalho se deu por necessidade, mas que pre tende prestar concurso e se tornar sepultador. “Vi muita gente desistir por não aguentar o trabalho braçal, mas também por questões da profissão. Muitos não sabem lidar com a morte. Eu encaro esse lugar como se fosse um parque, pelo sossego, e tento não me envolver com as emoções dos outros e as minhas”, afirma o jovem, que recebe 1 796 reais por mês.
O chefe da turma do Vila Formosa 1 é outro que entrou jovem no cemitério. Com 34 anos, James da Silva começou ali com 27. Como encarregado, recebe cerca de 150 reais a mais por mês, a título de bonificação. O salário bruto de um sepultador concursado é de cerca de 2.000 reais, incluindo penduricalhos, que não serão levados para a aposentadoria. Além do rendimento baixo, outro problema é o preconceito. “As pessoas, quando ouvem falar da nossa profissão, acham que somos sujos, alcoólatras e sem instrução”, diz. Casado e pai de dois filhos, Silva também afirma que quer se aposentar como sepultador.
Após 33 anos trabalhando no mesmo cemitério como sepultador e vigia noturno, o agora jardineiro Antonio Aparecido, 59, está na nova função há apenas seis meses. Fez um curso rápido, ganhou uma carteirinha e pode trabalhar como prestador de serviços. Seu trabalho, aliás, tem rendido a ele e a outros cerca de trinta colegas um bom dinheiro nesta época de pandemia. Cada jardim em uma cova no Vila Formosa custa 300 reais. O trabalho consiste em plantar grama, colocar um velário e instalar uma placa de pedra com o nome do falecido. As cruzes foram proibidas há cerca de vinte anos. “Desse valor, menos da metade fica com a gente, pois tem os materiais e a caixinha para os amigos (sepultadores) que nos indicam”, afirma Aparecido. Em um dia, ele chega a fazer dez jardins, que têm um prazo de manutenção de trinta dias. Antes da pandemia, a demanda não chegava à metade disso. Há depois uma cobrança de 50 reais mensais pela manutenção. Ao contrário da primeira etapa, que requer o recolhimento de uma taxa municipal de 6,35 reais, a segunda é livre. “O calote é muito grande, mas, graças a Deus, dá para a gente ganhar um dinheirinho.”
Caso o plano da prefeitura de conceder à iniciativa privada os 22 cemitérios municipais vá adiante, trabalhos como o de Antonio Aparecido poderão estar com os dias contados. A licitação, que estava em via de ser concluída, no entanto, foi barrada pelo Tribunal de Contas do Município (TCM), que aponta diversos questionamentos. O conselheiro Domingos Dissei quer saber, por exemplo, o que ocorrerá com os 373 jardineiros credenciados e como vai funcionar a gratuidade dos sepultamentos. Procurada, a Secretaria de Governo, responsável pelo processo, não quis se pronunciar.
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Enquanto a concessão não sai e o coronavírus muda a rotina da cidade, a gestão Covas criou uma série de protocolos e adotou diversas medidas para que o setor não entrasse em colapso. Uma delas foi abrir 8.000 covas no Vila Formosa, em áreas que não vinham sendo usadas para sepultamentos. As imagens vistas do alto ganharam repercussão mundial e geraram questionamentos que correram os aplicativos de mensagens. Em um deles, um homem filma as sepulturas e diz que elas estariam sendo fechadas sem que houvesse enterros, para justificar o pagamento pelo serviço. “O poder público é sempre cobrado por não estar preparado. Nos organizamos para uma pandemia que ninguém viveu. Lugares como Nova York e Manaus precisaram enterrar pessoas em valas coletivas. Aqui isso não acontecerá”, afirma o secretário das Subprefeituras, Alexandre Modonezi. “Deixamos um estoque estratégico. Se tudo der certo e felizmente não precisarmos usá-las, elas entrarão na rotina normal depois.”
Outra medida pode atingir todos os que precisam de um cemitério público. Caso o número de óbitos chegue a 400 por dia na metrópole, todos os enterros que ocorreriam nas 22 unidades municipais deverão ser concentrados em três: Vila Formosa, Cachoeirinha (Zona Norte) e São Luís (Zona Sul) — a medida não vale para espaços particulares, como o Cemitério do Morumbi. Em situação extrema, mesmo que a família possua concessão em outras necrópoles públicas, os enterros deverão seguir a regra. Após sessenta dias do fim da pandemia, poderá haver a transferência. “No fim do século XIX, por causa da epidemia da varíola, São Paulo fez algo parecido. Ao centralizar os enterros, é possível fazer todos os sepultamentos em valas individuais e em até 24 horas”, diz Modonezi.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 17 de junho de 2020, edição nº 2691.