“Truculência da PM de Derrite deixaria o malufismo constrangido”, diz pesquisador da USP

Bruno Paes Manso afirma que Polícia Militar nunca foi tão violenta como agora, sob o comando do atual secretário de Segurança

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
13 dez 2024, 08h06
Bruno Paes Manso, no NEV-USP: violência inédita
Bruno Paes Manso, no NEV-USP: violência inédita (Roberto Setton/Veja SP)
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A crise na segurança pública paulista, potencializada pelos recentes e sucessivos casos de violência policial, como o do PM que jogou um homem de cima de uma ponte e o de outro que deu onze tiros nas costas de um homem negro que furtou um mercado, está longe de terminar.

Apesar dos últimos movimentos moderados do governador Tarcísio de Freitas e de seu secretário, Guilherme Derrite, novas denúncias de agressões não param de circular nas redes sociais. “Não acredito em mudanças caso Derrite permaneça no cargo, pois ele chegou com o discurso bolsonarista da guerra e da truculência”, afirma Bruno Paes Manso.

Autor de uma trilogia literária de sucesso (A Guerra: a Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil; A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro; e A Fé e o Fuzil: Crime e Religião no Brasil do Século XXI, todos pela Editora Todavia) sobre o crime organizado em São Paulo e no Rio de Janeiro, o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP diz que a PM, havia trinta anos, vinha atuando para mudar o estigma de uma corporação violenta, após episódios graves como o da Favela Naval, nos anos 1990, e o da Rota 66, nas décadas anteriores.

“Depois do caso da Favela Naval, a corporação iniciou uma série de mudanças tecnológicas e voltadas aos direitos humanos, mas Derrite acabou com o perfil profissional da PM, que levou anos para conquistá-lo”, afirma.

Leia a entrevista a seguir.

A que se deve a escalada da violência policial em São Paulo nos últimos dois anos?

Muito em decorrência do discurso do secretário (Guilherme Derrite) e do governador (Tarcísio de Freitas). Quando o governo é mais compromissado, a tropa obedece de imediato. Discursos aguerridos, de guerra contra o crime, são como se a tropa fosse autorizada a ir para o confronto. Além do discurso, teve um agravante da quase descontinuidade do programa de câmeras corporais. Até então, havia um ciclo virtuoso de queda de letalidade policial.

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Estamos falando de duas questões: violência e letalidade policiais. As duas andam em alta, por quê?

A tropa acha que atua em benefício da população. Quando ela mata, acha que torna a sociedade mais segura, matando bandido. Quando é desacatada, ou quando o cidadão fala qualquer coisa, por ela se dar tanta importância, sente que a honra foi desacatada e usa a violência para colocar a pessoa no seu lugar. Trata-se de uma autoimagem equivocada do papel da polícia, que muitas vezes se vê em guerra e como representante do bem. Quando o chefe endossa esse discurso, acaba incentivando essa visão.

O secretário de Segurança, Guilherme Derrite, afirmou que a alta da letalidade decorre do aumento do número de prisões. Nessa lógica, quanto mais ações, mais confrontos e, consequentemente, mais óbitos. Como vê esse conceito?

É uma frase que eu ouço há mais de trinta anos, usada para justificar a violência. É a frase feita desde que as primeiras mortes começaram a crescer. A polícia não pode matar em serviço. Só pode matar em legítima defesa. É o argumento legal para justificar uma ação ilegal. Enquanto isso, vemos um crime cada vez mais forte.

Mas não é incomum setores da classe média aplaudirem ações policiais violentas quando elas ocorrem em favelas e periferias. Por que isso ocorre?

As pessoas costumam associar a violência policial à produção de ordem. É como se a violência usada pela polícia eliminasse o criminoso e deixasse o mundo mais seguro. Isso ensina as pessoas a obedecer à lei. Somos um país escravocrata que acredita que violência produz obediência. Mas essa violência vem produzindo desordem e empurra a polícia para o crime.

Como avalia as mudanças de discurso do governador Tarcísio de Freitas, que falou “não estar nem aí” quando ocorreram denúncias de violações de direitos humanos em ações da PM e que disse na semana passada que estava errado ao tentar descontinuar o monitoramento das câmeras nos coletes da PM?

O Tarcísio tenta dialogar com um povo mais racional, com a elite que tenta deixar o Bolsonaro de lado e apontar para um caminho mais moderado. Mas ele escolheu o Derrite, que vem das cenas de mídias sociais do bolsonarismo e ganhou fama e popularidade depois de dizer que policial que não tinha matado três pessoas não era bom policial. Foi assim que ele se fez.

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É possível apaziguar os ânimos da tropa com a manutenção de Derrite no cargo?

São coisas incompatíveis. Imagina o que teria acontecido se o policial flagrado jogando o homem da ponte não tivesse sido filmado. Ele e os outros policiais sairiam logo depois para comer hambúrguer e ficar contando as histórias entre eles e dando risadas. É um tipo de discurso que se propaga pela tropa e faz valorizar o mais truculento, o que faz as loucuras mais absurdas. A partir daí, vai-se formando uma cultura desvirtuada. O Derrite representa tudo isso.

O fato de a cúpula da Polícia Militar ter dado publicidade aos casos de violência, como o do PM que atirou o homem da ponte, não é suficiente para passar o recado de que o comando da corporação não vai aturar excessos?

O soldado foi o bode expiatório. É do jogo. Você entrega um e a coisa continua. Isso não para de acontecer. Não paramos de ver cenas da polícia. Lembramos da Favela Naval, dá para voltar ao Rota 66. Essas histórias se repetem, escandalizam. Mas depois da Favela Naval houve uma série de mudanças no Copom, no sistema de rádio, nos planejamentos. A polícia de São Paulo estava entre as menos violentas, as menos letais. Porém, agora — nunca tínhamos visto tanta violência. Isso deixa o malufismo, com o discurso de “Rota na rua” e “bandido bom é bandido morto”, constrangido.

Por que São Paulo não tem milícias como no Rio de Janeiro?

São Paulo tem outro modelo, composto pelo PCC, que organiza como se fosse uma agência reguladora do crime, a partir do controle dos presídios. Ele estabelece o controle nas comunidades com a venda de drogas, mas também atua no atacado. O PCC profissionalizou o mercado do crime. No Rio, isso não aconteceu. Lá, há vários grupos que controlam territórios, como um Game of Thrones, com várias bandeiras disputando mercados e territórios.

Publicado em VEJA São Paulo de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923

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