“O ser humano só se desenvolve com educação e arte”, afirma Talita Miranda
Diretora-geral do recém-lançado Instituto Danilo Santos de Miranda revela planos de preservar a memória do emblemático gestor do Sesc São Paulo

O legado de Danilo Santos de Miranda (1943-2023) para a arte e a cultura brasileiras é imensurável. Seu trabalho na direção do Sesc São Paulo, por quase quarenta anos, revolucionou a maneira de pensar em acesso e inclusão.
Agora, amigos e familiares trabalham para preservar e perpetuar a memória do gestor. Em dezembro, foi lançado o Instituto Danilo Santos de Miranda (IDM), sob direção-geral de sua filha, Talita Miranda, 50, licenciada em artes plásticas pela Faap. O objetivo é seguir as premissas do sociólogo sobre democracia, ética, igualdade e cidadania.
Para isso, ela coordena, neste primeiro momento, a preparação de uma plataforma digital, com entrevistas, vídeos e documentos de Miranda, e o levantamento de um acervo, para ser disponibilizado ao público. Outro braço de atuação é a realização de cursos livres, palestras, seminários e workshops sobre gestão cultural.
Há ainda a intenção de promover apoio financeiro a projetos socioeducativos, em parceria com empresas e outras instituições — incluindo o próprio Sesc —, que Talita define como a “grande meta” do instituto.
Como surgiu a ideia de criar o IDM?
A conversa começou de um jeito muito informal, com a minha mãe (Cleo Regina) e a minha irmã (Camila), a partir do que ficou dele, logo depois que faleceu. CDs, quadros, livros, documentos. Criou-se um grande acervo. No início de 2024, comecei a fazer reuniões para continuar de forma mais séria. Falei com pessoas do terceiro setor e da economia criativa, para me reconectar com figuras que já conhecia graças a ele, além de amigos próximos da família. Ficou claro que a gente conseguiria a força para criar esse instituto. O escritório jurídico CQS/FV, que conhecia o meu pai, entrou e nos recebeu de um jeito incrível. Abrimos o CNPJ em agosto. Em paralelo, conseguimos a aprovação do projeto na Rouanet.
Que tipos de projetos vão apoiar?
Os projetos têm que ter uma base socioeducativa, que estava muito presente na visão dele. A ação humana inserida no contexto cultural é educação. Uma exposição ou um festival faz com que as pessoas se eduquem. No pensamento dele, é mais importante uma sociedade investir na educação e na cultura do que ficar preocupada com economia e política. É a base do ser humano, a sociedade em si é uma estrutura cultural. A gente pretende abrir, por exemplo, para propostas da periferia da cidade, com atenção para inclusão e diversidade, também embutidas no olhar dele. Não tem como pautar algo de outra forma hoje em dia.
Como pretendem atrair parceiros? O Sesc seria um deles?
O Sesc pode até ser um parceiro, eles estavam presentes no lançamento do instituto, mas ainda está muito em aberto. Estamos em diálogo para definir se vai haver uma biblioteca pública das obras, mas a ideia é que passe para nós depois, para ser do instituto, em um espaço expositivo do acervo. Outras instituições, como Itaú Cultural e Instituto Moreira Salles, são possíveis parceiras, pois conviveram muito com o meu pai, em termo de princípios, e é mais fácil a conversa estar alinhada. Com a Rouanet, conseguimos falar com empresas, por meio do imposto. Tivemos conversas com dois empresários, para nos ajudar a ter uma sede. O escritório CQS/FV entrou na primeira etapa do projeto. Divulgamos de forma rápida justamente para chamar outros.
Qual é o maior desafio pela frente?
O apoio financeiro. Ter empresas dispostas a investir na arte e na cultura é um dos grandes desafios no Brasil. Estamos em um momento mais propício, com essa celebração em torno do cinema e, em termos de corpo político, com mais alinhamento de ministérios. Mas ainda é um lugar muito defasado, precário, quando se trata de programas destinados à arte e ao terceiro setor
“A cultura brasileira é de uma riqueza absurda, por isso dá orgulho da Fernanda Torres (pelo Globo de Ouro) ou do show do Caetano e da Bethânia lotado”
Talita Miranda
Qual é a sua visão sobre o momento atual da cultura no país?
O ser humano só se desenvolve por meio da educação, da arte. Não é só com investimento em gado e plantação. A cultura popular brasileira é de uma riqueza absurda, por isso dá orgulho da Fernanda Torres (pela vitória no Globo de Ouro) ou do show do Caetano Veloso e da Maria Bethânia lotado, com aquela multidão. Demorou para valorizarmos a cultura dessa forma. O instituto vai ser um outro lugar para isso acontecer, eu anseio que seja desse jeito.
Que grandes lições Danilo deixou?
A generosidade, o humanismo, o respeito. Ele sempre foi aberto à troca e a ouvir o outro. Uma esperança, um otimismo em relação ao ser humano. Tinha uma paixão pelo ser humano. Eu cresci com esse cara ético e respeitoso, que entrava no Sesc e sabia o nome da faxineira, abraçava os funcionários. Era meio Buda, meio missionário. Cresci tendo acesso a essa importância da arte. Tenho um sentimento de gratidão por ele, um pai presente, amigo, divertido.
Sobre o que vocês conversavam?
Os principais assuntos eram artes cênicas e música brasileira, as grandes paixões do meu pai. Também gostava muito de jazz, música clássica e artes plásticas, mas seu grande amor era o teatro. Às vezes falávamos sobre a situação política, ele estava sempre atualizado. Jair Bolsonaro e a extrema direita foram uma grande preocupação. Meu pai nunca foi um cara partidário, mas era mais progressista. Também gostava muito de futebol, era um ilustre torcedor do Fluminense, assistia a todos os jogos. Também tinha um grande apreço pela natureza, pelo ócio e pela contemplação. A casa dele e da minha mãe, no Pacaembu, que foi vendida depois que ele morreu, tinha um jardim com vários pássaros. Mas o principal era a arte. Mesmo no final da vida, com questões de saúde, estava sempre lá ouvindo Elis Regina, Ella Fitzgerald e John Coltrane.
Quais seus principais triunfos?
O meu pai foi uma pessoa que entendia não só de gestão administrativa, de lidar e coordenar um time tão grande como o do Sesc, mas também de sensibilidade, de entender o pensamento social, ter um afeto, em função da melhoria do outro, para o outro. Foi seminarista, então tinha essa dedicação a buscar melhorar a vida do próximo. Essa junção de coisas fez que o trabalho dele fosse único. Foi um gestor que ajudou políticas públicas; não era político, mas tinha contato e dava consultoria. Depois do falecimento, veio o retorno de um reconhecimento muito forte, até de outros países. É uma figura que virou um grande realizador, pensador, um alicerce do país.
Publicado em VEJA São Paulo de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926