“A maior aporofobia que existe hoje é a do olhar”, diz CEO da SP Invisível
André Soler cocriou ONG que dá visibilidade às pessoas em situação de rua; ele critica atuação do poder público no trato com essa população
Formado em cinema pela Faap, André Soler, 29, optou por fazer do seu projeto de vida captar imagens de pessoas que vivem em situação de rua e dar visibilidade às suas histórias. Há nove anos ele cocriou a SP Invisível, uma ONG que tem, entre outras atuações, distribuir 10 000 agasalhos no inverno e fornecer 52 000 marmitas. A SP Invisível também capacita com cursos de culinária para reintegração ao mercado de trabalho. A atuação da ONG vem chamando a atenção de famosos, como Chris Martin, vocalista do Coldplay, que, entre um show e outro que fez em março por aqui, saiu às ruas com Soler para distribuir marmitas. Na entrevista a seguir, o CEO da SP Invisível comenta a atuação do poder público e diz que a falta de estrutura de alguns serviços leva as pessoas a decidirem permanecer nas ruas.
Em que momento decidiu voltar o olhar para as “pessoas invisíveis”?
A igreja foi o lugar onde essa sensibilidade começou em mim (ele é da Igreja Batista da Água Branca). É uma teologia de como eu enxergo o próximo, de como eu vejo o próximo. Eles tinham propostas como a de levar as pessoas para conhecer a Fundação Casa e algumas pessoas em situação de rua. Daí fizemos muitas fotos. Você é de família de classe média alta. Como ela reagiu quando decidiu trabalhar com isso? A princípio, reagiram me questionando. Diziam coisas como: “Será que esse é o melhor caminho? Tem perspectiva de futuro?”. Acho que é a preocupação de todos os pais, saber se vai ter futuro e se vai chegar a algum lugar. Isso me trouxe mais responsabilidade.
Você já foi incompreendido por seus pares na faculdade e fora dela?
Muito incompreendido. Eu frequento esses ambientes e acabo sendo um outsider. Ao mesmo tempo, vejo que existe um preconceito de falar assim “Ah, por que não está pensando em dinheiro?”. Não faz sentido. Prosperar não é acumular riqueza. É dividir, e, quanto mais compartilho, mais enriqueço.
Qual é o diferencial da SP Invisível em relação a outras ONGs?
A gente nasce como ouvinte, sem nenhum outro objetivo com a pessoa. Nosso maior diferencial é o cuidado, o olhar humanizado. Eu nunca doei para uma pessoa em situação de rua algo que eu não usaria, não comeria nem vestiria. O cuidado com os detalhes é muito importante. Estamos atentos para que essa pessoa se sinta cuidada.
Qual foi o resultado de levar quatro pessoas em situação de rua para o show do Coldplay?
Isso trouxe uma visibilidade muito grande para a instituição e para essas pessoas, porque mostra que a população de rua pode estar nesse lugar, onde o ingresso custa 1 200 reais. Como é que uma pessoa em situação de rua vai estar naquele lugar? Só na hora de montar e desmontar o palco. A SP Invisível tem o papel de romper barreiras sociais e de normalizar o acesso dessa população em qualquer situação. A gente consegue voltar o olhar da sociedade para dizer “Olha, essas pessoas existem e não são invisíveis”.
É espontânea a adesão de famosos à causa da SP Invisível?
São pessoas que acreditam e que se identificam com o nosso trabalho e começam a seguir a gente (redes sociais). Quando temos oportunidade de falar com elas, convidamos pelo Instagram ou outros canais para estar mais perto da gente, dizendo “Você pode fazer mais? Se der um pouco do seu tempo aqui, pode dar voz para muito mais gente”. Aí essas pessoas compram (a ideia) e dizem “Eu quero”. Tivemos algumas pessoas (famosas) que já participaram das ações.
O fato de você ser de classe média alta ajuda nesse contato?
Das pessoas famosas não. Eu tenho o privilégio de ter acesso a muitos lugares e muitos relacionamentos que contribuem para o crescimento da SP Invisível e me conecto com as pessoas. Tenho encontrado pares nesse caminho que estão querendo trabalhar comigo. O propósito da SP Invisível existe. Algumas pessoas simpatizam com ele e outras não. Circulo em ambientes que têm pessoas com o poder aquisitivo bom e consigo ter recursos para isso (ações sociais). Essa atuação difere de trabalhos como o do padre Júlio Lancellotti. O padre Júlio tem um papel fundamental de lutar pelos direitos da população em situação de rua a partir da religião. E o padre Júlio tem uma perspectiva religiosa, ou da Bíblia, muito parecida com a minha. Só muda a denominação, mas o Deus que ele vê é o Deus que eu vejo. A SP Invisível trabalha de forma institucional, tem missão, valores e planejamento estratégico visando a indicadores de resultados. São trabalhos realizados de maneira completamente diferentes, mas com visões muito alinhadas.
Padre Júlio fala muito da aporofobia, a aversão aos pobres. Os paulistanos são aporofóbicos?
Sim. É a maior cidade do Brasil, a de maior receita e é a que menos cuida da sua margem. As metrópoles têm essa característica de desumanizar. A maior aporofobia que existe hoje é a do olhar. É o de olhar para a pessoa e ter nojo dela. A SP Invisível é sobre dar voz, dar luz. O nosso objetivo vai muito em direção a gente quebrar preconceito.
Como você avalia a forma que a prefeitura lida com a questão?
A prefeitura tem alguns bons serviços, uma pluralidade de serviços públicos. Insuficientes, mas tem. E nesse quesito ela tem olhado para isso. Mas, no quesito humanização dessas pessoas, eu não tenho visto nenhuma medida. A prefeitura fala que tem albergues suficientes para acolher toda a população de rua. Então por que a população de rua não está nesses lugares? Porque não é cuidada. Os lugares não são salubres, a condição de dormir naqueles locais às vezes é pior do que dormir na rua. E não existe uma flexibilidade em cuidar, já que tem horário para sair e hora para chegar.
Algumas pessoas de fato preferem ficar nas ruas a estar nesses locais?
Sim. Eu ouço da população de rua que essa estrutura existente hoje faz com que prefiram ficar na rua. Eu escuto que as pessoas em situação de rua preferem estar na rua. Mas quais são as condições que você ofereceu para ela não estar na rua? Se alguém está na rua, é porque avaliou todas as possibilidades que tem e não encontrou nenhuma melhor do que essa. Para estarem em outro lugar, precisam ser acolhidas, bem cuidadas, tratadas. A gente sempre quer terceirizar o problema, sendo que o problema quem consegue resolver é o Estado.
Publicado em VEJA São Paulo de 21 de junho de 2023, edição nº 2846