O escritor francês Marcel Proust fez seu personagem mergulhar uma parte do bolinho madeleine no chá e os aromas que se elevaram daquela mistura o transportaram à infância, dando início a uma viagem pela memória que revolucionou o romance do século XX, ‘Em Busca do Tempo Perdido’.
Certos sabores são mais perfeitos assim, na memória. Se acaso reencontramos as comidas, os sabores não são exatamente os mesmos. Resultaram dos temperos da casa, da mãe, da avó, das maneiras de fazer, da sequência dos ingredientes, dos momentos em que os sentimos, do sabe-se lá o quê. Perdidos estes, aqueles se escondem na memória.
Muitas vezes nem são pratos de verdade que saltam para o tempo presente, são emoções, coisas que sentimos quando com eles convivíamos. Outras vezes são as cores, a aparência, o que hoje se chama de “o visual”. Pelo aroma e pela imagem, é tudo perfeição na mesa da memória.
A sopa de tutanos, por exemplo: aqueles brancos ossos fervendo com temperos, depois a retirada dos talos de tutano de dentro dos ossos, o refogado cheirando longe, a juntada dos tutanos e do caldo dos ossos e da colherinha de farinha que engrossava o caldo, aqueles cheiros todos somando-se à fome…
O mingau de fubá borbulhando na panela, escuras cascas de canela emergindo às vezes na mistura cobiçada, perfumando-a de mais desejos, enquanto as mãos atarefadas da mãe distribuíam pedacinhos de queijo e uma ou outra pelotinha de manteiga em cinco pratos fundos, sobre os quais a concha derramava o mingau fumegante amarelo leitoso que aquecia o mundo.
O café jogado no fundo da panela onde se acabou de fazer o angu, em cima daquele beiju meio pegado. Antes de pôr o café, a panela quente de pedra-sabão ia queimando de leve a crosta que restava do angu e então a meia canequinha de café frio chiava e borbulhava na quentura. Comia-se de colher o beiju ainda crocante com gosto de café.
A longa cobra amarela feita de batata amassada, farinha de trigo, ovo, sal e queijo ralado era rolada por hábeis mãos na mesa enfarinhada até ficar da grossura de um dedo de homem, depois lá vinha a faca rápida a cortar a cobra em pedacinhos e mãos ainda brancas de farinha os levavam e punham a dourar na frigideira, de onde logo se desprendia um cheiro de queijo e batata fritos. Mal dava tempo de esperar esfriar para sentir o bolinho desmanchar- se na boca.
O chá-mate vinha verde, era preciso queimá-lo para quebrar o amargo. Botava-se uma brasa viva ou duas do fogão a lenha no fundo da caneca, açúcar cristal por cima, mate sobre o açúcar, e deixava-se queimar um pouco. Subia aquele perfume de açúcar e chá queimados, saboreava-se antes mesmo de tomar. Depois se derramava água fervendo por cima, coava-se e estava pronto. Ainda dá para fazer, com a brasa da churrasqueira ou da fogueira junina.
Acabou a galinha ensopada? Acabou. Ficou só o caldo na panela de barro no meio da mesa. Logo voltava a panela para o fogo, rapidinho, de onde retornava fumegante, e alguém materializava um pão e pequenas mãos ávidas mergulhavam pedaços de pão no caldo rico. Fondue caipira.
Também tínhamos a nossa raclette: talhadas de queijo mineiro afogadas na caneca de café quentíssimo. Em alguns minutos o café quebrava a elegância do queijo e ele vinha
desmilinguindo-se elástico para cima do pão.
Quem soube apreciar no devido tempo a riqueza variada dos sabores caseiros abre melhor seu apetite para a longa viagem ao redor das mesas da vida.