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Cadeia na capital se destaca pelo respeito a detentas transexuais

No Centro de Detenção Provisória de Pinheiros II, medidas simples acabaram com a violência sexual contra essa população

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 fev 2018, 12h10 - Publicado em 23 fev 2018, 06h00

Em janeiro de 2017, ao referir-se ao massacre de 56 detentos em uma prisão de Manaus, o papa Francisco expressou consternação: “Gostaria de renovar o meu apelo para que instituições prisionais sejam locais de reabilitação e reintegração social e que as condições de vida dos detidos sejam dignas de seres humanos”. Um século e meio antes, em 1862, o escritor russo Fiódor Dostoiévski escreveu, em Memórias da Casa dos Mortos, que “o grau de civilização de uma sociedade pode ser julgado ao se adentrar em suas prisões”.

Dos 726 000 presos no Brasil, um grupo se torna mais vulnerável em celas insalubres, superlotadas e dominadas por facções criminosas: as transexuais. Já bastante segregadas nas ruas do país recordista em assassinato de pessoas trans, com 868 homicídios entre 2008 e 2016, no sistema penitenciário elas chegam a ter uma vida pior.

Casos de violência sexual e agressões psicológicas são rotineiros. Nem a resolução federal do Conselho Nacional de Combate à Discriminação, de abril de 2014, que estabelece que as trans sejam tratadas pelo nome social, mudou esse quadro. Tanto que, na semana passada, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou que duas trans fossem transferidas de uma unidade de Presidente Prudente, onde sofriam agressões, para uma prisão feminina.

Guilherme Rodrigues e Eliane de Souza, do CDP II (João Bertholini/Veja SP)

Uma experiência pioneira no tratamento de presas trans está em curso na cadeia masculina Centro de Detenção Provisória de Pinheiros II, em São Paulo. Tendo no currículo trabalhos no Complexo do Carandiru, onde atuou na contenção de rebeliões, Guilherme Rodrigues assumiu a direção do local em 2010. Notou logo de cara uma grande população prisional de transexuais, que algumas vezes representava 20% do total dos encarcerados. Havia uma série de problemas de comportamento entre elas. Imagine uma pessoa que se reconhece como mulher ter o cabelo raspado. Os nervos ficavam expostos. Uma discussão com o colega resultava em espancamento.

Alto, de voz baixa e corintiano roxo, o Doutor Guilherme, como é conhecido, mudou o tratamento dado a essa população. “Permiti a manutenção de cabelos longos, instaurei o uso do nome social e autorizei a entrada de hormônios sob prescrição médica.” Isso sem falar que o CDP II é a única
cadeia do Brasil onde as transexuais recebem roupas íntimas femininas.

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Todos os sábados elas disputam campeonato de vôlei. Os times têm nomes como As Panikets, As Poderosas e Gaiola das Loucas. “Realizamos o Dia de Princesa, com desfiles de moda e cursos de beleza”, lembra Eliane de Souza, diretora técnica de saúde. “Como resultado dessas e de outras ações, acabou a violência sexual por aqui.”

Torneio de vôlei, com partidas aos sábados: os times têm nomes como As Poderosas e As Panikets (Acervo SAP/Veja SP)

O Doutor Guilherme é um dos personagens do livro Carcereiros, de 2012, do médico e escritor Drauzio Varella. “Somos amigos há vinte anos”, diz Varella. Na época do Carandiru, as transexuais eram relegadas ao 4º andar do Pavilhão 5, conhecido como “a cadeia das cadeias”. Ali ficavam confinados estupradores e viciados em dívida com traficantes. As transexuais eram violentadas com frequência. “O Guilherme sabe bem o que elas sofreram em cadeias. Ele chegou ao sistema ainda na ditadura, adaptou-se aos novos tempos.”

Jully Barbosa, de 40 anos, que se prostituía, constitui um exemplo de que o respeito não é uma diretriz de todo o sistema. Condenada por assaltar e agredir um cliente, ela teve uma passagem pela unidade prisional de Belém, na Zona Leste. “Rasparam o meu cabelo assim que pisei lá”, diz. “Foi como se tivessem arrancado um pedaço de mim.” Ao ser transferida para Pinheiros, a coisa mudou. “Eu me sinto mais segura aqui do que na rua.” Carol Oliver, presa em flagrante por assaltar com o namorado a loja do Walmart da Avenida Pacaembu, foi violentada por cinco presos também na cadeia de Belém. “Hoje tenho paz.”

Doutor Guilherme permite que as transexuais tenham relacionamentos amorosos na cadeia. “No mundo dos presídios, os homens que se relacionam com elas não são considerados homossexuais”, lembra Drauzio Varella. Duda Valentina, de 38 anos, presa por tráfico de drogas, dorme na mesma cama que Kaíque de Oliveira, de 24 anos, detido em flagrante, em novembro, ao tentar roubar um carro em Itaquera. “Eu e a Dudinha começamos a ficar um dia depois da minha chegada aqui”, lembra o rapaz. “Eu só havia me relacionado com as minas, mas na cadeia bate a carência.”

A presa Rafaela: a única cadeia do país a dar roupas femininas às transexuais roupas íntimas femininas às transexuais (João Bertholini)

Eles dormem juntos na cela 10 do Pavilhão 1. O xadrez tem 27 pessoas, com mais de dez casais de trans e seus companheiros. “Já tive dois namorados aqui na prisão”, conta Rafaela Oliveira, de 19 anos, presa por roubo. Ela se prostituía desde a adolescência, na região da Represa de Guarapiranga. Tem 24 irmãos por parte de pai e quatro por parte de mãe. Confinada desde agosto de 2017, tornou-se uma das leitoras mais assíduas da biblioteca da cadeia. “Leio três livros por mês, adoro Zíbia Gasparetto e Dan Brown.” A unidade tem 8 000 livros. O catálogo com as opções literárias passa nas celas todas as terças de manhã.

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Maria Clara de Sena, de 39 anos, a única transexual do mundo a fazer parte do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, ligado à ONU, ganhou projeção em seu ativismo em prol dos direitos da população trans dentro das cadeias. Ela teve um passado típico de seu pares: abandonada pela família, encontrou na prostituição a única forma de sobrevivência. Foi para a faculdade de serviço social em 2009, quando decidiu dar um basta nessa vida.

Kaíque, que nunca se relacionou com trans fora das grades, e Duda: eles dividem a cela com mais de dez casais (João Bertholini/Veja SP)

Maria Clara visitou unidades prisionais no Brasil inteiro e constatou que as transexuais são tratadas como “a escória”. A convite do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), que faz um trabalho respeitado pelas boas práticas processuais e pela defesa dos direitos da população carcerária, deu uma palestra no CDP II. “Encontrei várias amigas que moravam no mesmo lugar que eu, em São Paulo”, lembra. “Éramos todas meninas da cafetina Carla Facão.”

Atualmente vivendo no Canadá com status de refugiada, após ser ameaçada de morte por um policial, Maria Clara diz: “Se elas tiverem a dignidade respeitada, poderão sair e recomeçar a vida longe do crime. E de cabeça erguida. Tratá-las com respeito é fundamental para toda a sociedade.”

Do outro lado da cela 

Dos 31 000 agentes do Estado de São Paulo, apenas cinco são transexuais

Cau Lucas passou no concurso de agente penitenciário há onze anos e, desde então, atua na Penitenciária Feminina de Sant’ana, na Zona Norte. Ele nunca se reconheceu no corpo de mulher. Depois de um processo que envolveu psicólogo e psiquiatra, obteve autorização médica para tomar hormônios e passar por procedimentos como a mastectomia — a remoção total das mamas.  “O dia da operação foi um dos mais felizes da minha vida”, lembra. “Adoro andar de regata ou sem camisa quando estou de folga.”

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O agente transexual Cau Lucas (João Bertholini/Veja SP)

Nem todo transexual deseja se submeter a essa cirurgia. Dos 31 000 agentes do Estado de São Paulo, apenas cinco são homens trans. Cau foi o primeiro a se assumir para a corporação. E, como todo pioneiro, pagou um preço por isso. “Muitos colegas de trabalho insistiam em me chamar pelo nome de batismo, o que é uma tremenda falta de respeito”, recorda.

Ele recorreu às resoluções estadual e federal para garantir que seu nome social fosse o único pelo qual pudesse ser chamado. Cau vive com uma companheira, sonha em adotar uma criança e conseguiu na Justiça o direito de pôr o nome social em todos os seus documentos.

Jill Moraes, de 54 anos, que passou a adolescência em comunidade hippie no litoral e no interior, ingressou no sistema prisional aos 24. Desde criança ele se reconhece como garoto. “Cheguei a pensar que eu era homossexual feminina, mas com o tempo fui entendendo melhor o meu caso.” É tratado de “Seu Jill” por colegas de trabalho e pelas detentas do CPP Feminino Dra. Marina Marigo Cardoso de Oliveira, na Raposo Tavares. “Eu pensava que a mudança física fosse possível apenas para gente rica, como o Chaz Bono, filho da Cher”, lembra. “Estava enganado. Hoje, consigo hormônio em um posto de saúde da prefeitura.”

Jill Moraes: homens trans são tratados pelo nome social e exercem atividades administrativas em cadeias femininas (João Bertholini/Veja SP)

Tanto Jill quanto Cau exercem funções administrativas — como tabulação de dados e coordenação dos portões de entrada de carros e visitantes. Por medida de segurança, eles não têm contato direto com as presas. Não podem, por exemplo, abrir nem fechar celas. “Meu corpo e minha mente são masculinos. Estar distante do contato físico é uma proteção a elas e a mim mesmo.”

Cadeias paulistas

226 000 presos de todos os gêneros (31% do sistema prisional do país)
1 048 travestis
31 000 agentes penitenciários
88 transexuais
5 agentes homens trans

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