Uma sobrinha conta-me que foi a um baile funk na Baixada Fluminense, lugar aonde vão moças da periferia e muitas garotas da burguesia, estas mais do que curiosas para ver de perto, muito perto, os garotos que vivem perigosamente ou que convivem com os que vivem perigosamente nas favelas cariocas. Ela descreveu um grande salão com umas trinta caixas de som, reproduzindo a música, bem, quer dizer, vá lá: a música das bandas ou do DJ, absurdamente alta, enquanto todas as garotas praticavam aquela dança aos arrancos e cotoveladas, arrebitando-se para cima dos homens.
É uma dança de relar, e nisso deve ter parentesco funcional com o maxixe, que escandalizava os estrangeiros de passagem pelo Rio nos últimos anos do Império e primeiras décadas da República. O funk tem essa coisa da fricção, com outro ritmo e outra coreografia. No maxixe, o casal relava de frente e dava umbigadas; no funk, as moças relam preferencialmente de costas, quer dizer…, de costas, vá. As roupas de hoje valorizam partes diferentes: os shorts justos e as microssaias são desenhados para salientar os contornos das tchutchucas; no passado, o saiotão comprido e leve era movimentado e erguido com as mãos, no ritmo; a camisa folgada nos ombros era feita para arejar, e escorregar. O maxixe chegou às gafieiras e aos salões boêmios até os anos de 1920, mas era na periferia que se dançava com folga.
Desviei-me do assunto. Falava da sobrinha e do baile no clube da periferia do Rio, uma grande casa de shows na beira da Via Dutra. A sobrinha paulista foi lá com as primas cariocas para ver como que era.
A idéia mais aproximada que fiz, ouvindo o relato, foi de uns bailes de Carnaval das décadas de 1950 e 60, os últimos, os da decadência. É na decadência que a intenção transgressora se sobrepõe. Naqueles bailes, beijar não-namorados antecipou o “ficar” de hoje. Conquistar espaços nos corpos eventuais multiplicava-se em quatro bailes: de sábado, domingo, segunda e terça – sendo o de terça o mais extremado, ao som do “é hoje só, amanhã não tem mais”.
O baile funk não dá trégua: é o Carnaval semanal. A minha sobrinha até se divertia com o que via, mas sem pique para entrar no clima. Não que não tivesse visto coisa parecida: nas raves paulistanas acontece muita coisa. Diz que não tem nada contra quem, por sua vontade, se envolve numa brincadeira. O problema é quando a garota não quer. E aconteceu com ela naquele baile.
Entre o salão e os toaletes femininos havia um corredor de uns 10 metros, com iluminação acende-apaga, atravancado por grande número de rapazes de copo na mão ou baseado na boca. Ela olhou, achou meio desagradável ter de passar por eles, mas foi. Aquilo virou um corredor polonês de mãos e apalpadelas, em cima, embaixo, na frente, atrás, entre – que ela transpôs sob gritos, protestos, distribuindo tapas e ouvindo risadas e “gostosa”, até chegar ao outro lado.
Já vou me desviar do assunto de novo, perguntando: qual a graça que tem? O que leva homens, grosseiros, arrogantes, moleques, delinqüentes, a se aproveitar de circunstâncias (uma rua deserta, uma condução, um tumulto, um baile funk) para uma apalpadela nas mulheres? Em bandos, sentem-se mais seguros.
Voltando à sobrinha. Salva momentaneamente dentro do toalete, ela procurou dividir sua indignação com as outras meninas, que haviam passado pelo mesmo constrangimento. Para sua surpresa, elas não se importaram, não, tinham-se divertido com a farra de mãos dos rapazes. Outra surpresa: algumas saíam do toalete sem calcinha.
Abriu caminho a tapa, na volta, foi embora e disse que nunca mais. Contou-me que depois daquele baile compreendeu melhor o que está acontecendo no Rio de Janeiro.