Pais que adotaram crianças abandonadas por mães viciadas em crack
Em 2015, foram registrados mais de setenta casos de bebês deixados por usuárias da droga
Gerado por mãe alcoólatra, moradora de rua e usuária de drogas ilegais, M., de 7 meses, teria um futuro sombrio pela frente, não fosse por uma obra do destino: foi adotado em agosto pela fotógrafa paulistana Annie Aline Bacarat. Hoje, vive em um apartamento confortável na Água Branca, na Zona Oeste, e tem um quarto só para ele, colorido e cheio de brinquedos. “Eu não esperava um presente de aniversário tão perfeito”, comemora Annie.
Ela completou 38 anos em 5 de agosto, data em que tirou o garoto do abrigo. Histórias com um final feliz parecido têm ocorrido com certa frequência na Vara Central da Infância e da Juventude. O lugar se encarrega dos bebês e das crianças deixadas por mães viciadas em drogas que vivem na Cracolândia.
Várias mulheres abandonam os filhos nos hospitais públicos situados nas imediações da Praça Júlio Prestes logo depois de dar à luz. Algumas chegam a esses locais com a bolsa amniótica estourada, carregando consigo cachimbos e pedras de pasta de cocaína. Depois do parto, voltam às ruas para consumir essas substâncias, como se nada tivesse acontecido.
No ano passado, foram registrados mais de setenta casos do tipo na região, 10% mais do que a média de 2011. O drama aumenta na esteira do crescimento do fluxo de consumidores de crack no pedaço, a despeito de vários investimentos dos governos estadual e municipal na área para tentar resolver o problema. Muitos planos tiveram um alcance limitado ou simplesmente fracassaram de forma retumbante.
Esse descontrole do poder público se reflete na multiplicação de casos de gravidez na Cracolândia. “É um fenômeno triste, mas que tem levado esperança a muita gente”, define a juíza Monica Arnoni, responsável pela vara central, referindo-se às pessoas que recorrem ao local dispostas a fazer uma adoção. Em nenhum outro lugar as chances de sucesso são tão grandes.
Ali, a fila de espera para uma criança de até 2 anos leva em torno de 24 meses. Nas outras dez varas espalhadas pela capital, a média é de quatro anos. “O motivo certamente é a grande concentração de bebês por causa da proximidade com aquela região de consumo de drogas”, afirma Reinaldo Cintra, desembargador da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo.
As famílias que procuram os filhos da Cracolândia são formadas por casais de classe média, entre 30 e 40 anos (veja nos quadros ao longo da reportagem algumas dessas histórias). Moradores da Água Rasa, na Zona Leste, a professora Thais Heer e seu marido, o engenheiro Ricardo Kiste, estão juntos desde 2006 e tentaram ter um filho biológico por sete anos, sem sucesso.
Thais resolveu, então, ceder aos pedidos do marido, que sempre preferiu a adoção. “Há muita criança carente no mundo”, justifica Kiste. Em dezembro de 2013, eles entraram com a documentação e passaram por todas as fases do processo, que começou com entrevistas com psicólogos e assistentes sociais. Além disso, precisaram entregar uma papelada, que incluiu comprovante de residência, de renda (é necessário ao menos um salário mínimo por membro da família) e uma check-list preenchida com o perfil desejado da criança.
Para Thais e Ricardo, a única exigência era que ela tivesse até 4 anos, com doença curável. A maratona burocrática só terminou em fevereiro de 2015, quando foram aprovados e entraram na fila. Esperaram até agosto daquele ano, no momento em que a assistente social ligou para que eles conhecessem um menino de 7 meses. A. era pouco desenvolvido para sua idade — não engatinhava nem balbuciava — e tinha sífilis presumida, herança da mãe biológica (foi curado algumas semanas após o nascimento). “Nada disso importava”, lembra Thais. “Bati os olhos e senti amor à primeira vista.” O casal arrumou o quartinho da criança em uma semana, com decoração inspirada no livro O Pequeno Príncipe.
Adotar um menino da Cracolândia requer dose extra de dedicação e preparo dos futuros pais. “As grávidas que vivem em condições precárias têm grande probabilidade de passar aos seus filhos doenças sexualmente transmissíveis, entre elas hepatite, aids e sífilis, que podem provocar convulsões e até a morte do recém-nascido”, relata a infectologista Marinella Della Negra, uma das pioneiras no atendimento de pacientes com HIV no Brasil.
Para minimizar os danos, hospitais que costumam receber essas mulheres, como o Leonor Mendes de Barros e a Santa Casa, no centro, fazem exames na mãe assim que ela chega ao local. O bebê diagnosticado com sífilis presumida toma doses de penicilina nos três primeiros dias de vida.
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Quando se detecta o HIV na mãe, ela e o recém-nascido recebem um coquetel de medicamentos antirretrovirais durante a cesárea. A criança continuará tomando os remédios diariamente até completar 4 meses. Encerrado esse período, é feita uma nova avaliação. Em aproximadamente 70% dos casos, o vírus é eliminado depois desse tratamento. Mesmo com o resultado negativo, a criança precisará passar por testes regulares até completar 1 ano e meio.
“Antes de eu conhecer minha filha, as assistentes sociais nos avisaram que ela tinha nascido com HIV, mas que o vírus já havia sido eliminado”, conta a economista Anna Bonizzi, 39. “Ainda assim, as profissionais disseram que havia o risco de aparecerem problemas neurológicos no futuro.” Os alertas não mudaram sua opinião. “Nossa decisão de adotar já estava tomada”, diz Anna. “E o prognóstico nunca se confirmou”, completa. Desde 2012, ela é mãe de J., hoje com 5 anos.
Em situações convencionais, nas quais as gestantes soropositivas fazem o pré-natal regularmente, a probabilidade de transmitir o HIV para o feto é de 4%. Isso ocorre porque as futuras mães recebem medicamentos para reduzir a carga viral, o que diminui a possibilidade de ocorrer a chamada transmissão vertical. Não é a realidade das usuárias de drogas, que quase nunca tomam tal cuidado. “Mulheres soropositivas sem tratamento têm de 25% a 30% de probabilidade de passar o vírus para o bebê”, diz Jean Gorinchteyn, médico infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.
Além disso, a desnutrição da mãe pode causar graves problemas imunológicos e debilidades no fígado, intestino e cérebro. O abuso de substâncias psicotrópicas pela gestante também costuma afetar diretamente o organismo do recém‑nascido. “Ele apresenta dependência química e passa três dias com crise de abstinência. De acordo com o quadro, recebe sedação”, conta Corintio Mariani Neto, diretor do Hospital Leonor Mendes de Barros. “Futuramente, os entorpecentes podem provocar esquizofrenia, hiperatividade e depressão, além de tendência a dependência química”, acrescenta Carolina Marçal, coordenadora do Serviço de Psiquiatria da Criança e do Adolescente do A. C. Camargo Cancer Center.
Outro problema enfrentado pelas novas famílias é o preconceito — tanto por ter uma criança adotada, como pela sua origem na Cracolândia. “Certa vez, minha vizinha perguntou: ‘É sua filha mesmo?’. Respirei fundo e respondi: ‘Sim, esperei por mais de cinco anos’”, relembra a advogada Luciana Hilgenberg, 40, mãe de B., 3.
Para minimizarem os efeitos desse estigma, muitos pais optam por matricular as crianças em colégios que trabalham bem a questão da inclusão e da diversidade. “Pusemos nossa filha numa escolinha escolhida a dedo”, diz o médico infectologista paulistano Marcelo Neubauer de Paula, 47, pai de uma garota de 5. “Além de colegas de etnias e classes sociais diferentes, havia na sala dela dois outros vindos da vara central.”
O drama das crianças abandonadas na Cracolândia deve continuar crescendo. Segundo os voluntários e assistentes sociais que atuam na região, há hoje cerca de 600 usuários de crack no fluxo, 20% mais do que no mesmo período do ano passado. O posto do Programa Recomeço — Conexão Rua, iniciativa do governo estadual de resgate aos dependentes, montado na região da Praça JúlioPrestes, atendeu nos últimos dois meses 21 grávidas, mas estima-se que o número de gestantes que moram ali ou frequentam o ponto seja bem maior: cerca de cinquenta.
“Há uma tenda aqui que distribui preservativos, e encaminhamos as mulheres aos postos de saúde para receber anticoncepcionais gratuitos. Só que poucas seguem nossas orientações”, lamenta a pastora Nildes Nery, responsável por uma ONG com forte atuação na área. “Quando elas engravidam, nós não incentivamos a adoção, ao contrário: fazemos de tudo para que elas larguem as drogas e cuidem dos filhos, mas a maioria não consegue.”
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Frequentadora da Cracolândia há quatro anos, a mineira Izabel Cristina Pereira, 32, deixou seu recém-nascido na Santa Casa no início do ano passado, depois de dar à luz. “Não tive alternativa, pois estava morando na rua”, justifica ela, que está grávida novamente, de quatro meses. “Desta vez, estou dividindo uma casa com uma amiga na Freguesia do Ó. Então, acho que consigo criar este filho”, acredita.
A paulista Evelyn Vikione da Silva, 24, já entregou dois filhos para adoção, o último deles em setembro. “As crianças não podiam ficar neste ambiente”, justifica. Ela é soropositiva e vive no centro desde 2009. “Há grávidas o tempo todo entre a gente. De repente, a barriga some e não aparece bebê algum”, comenta Suzana Souza, 40, outra usuária residente do pedaço. “Algumas deixam os nenês com as avós. Mas e quem não dispõe disso? Precisa dar ou vender.”
Legalmente, essas mulheres podem deixar o recém-nascido para adoção, bastando declarar sua vontade para um juiz da vara da infância. Boa parte, no entanto, nem isso faz: um dia após o parto, foge do local sem deixar vestígios. Felizmente, muitas famílias paulistanas estão dispostas a mudar a sina das crianças nascidas em tal ambiente. A despeito das dificuldades, preconceitos e eventuais sequelas de doenças, o futuro delas certamente será bem mais promissor nos novos lares. “Com boa educação, amor e carinho, a criança pode superar tudo isso e levar uma vida normal”, acredita a psiquiatra Carolina Marçal.
UM LAR PARA OS FILHOS DO CRACK
Choro à noite no quarto. “A menina chegou a nossa vida em maio de 2012. No caminho do abrigo para casa, olhava pela janela maravilhada e se empolgava ainda mais quando passava um caminhão. Até hoje, gosta deles. No começo, notamos que B. achava estranho ter sempre as mesmas pessoas ao seu redor e chorava à noite no seu quarto. Aos poucos, foi se acostumando. Em agosto, minha esposa, que também era médica, faleceu devido a uma hepatite fulminante. É difícil até hoje suportar essa ausência, mas minha filha me dá forças para continuar.”
Bebê com o vírus HIV. “A mãe biológica de J. morava na Cracolândia e era soropositiva. Por isso, a bebê nasceu com HIV. Felizmente, passou por um tratamento e conseguiu se ver livre do vírus. Quando a adotamos, no fim de 2012, ela já estava curada. Hoje, frequentamos grupos de apoio a famílias como a nossa. Levamos a menina às reuniões para ela ver que o seu caso não é único.”
A decisão que contrariou amigos. “Eu tinha o sonho de ser mãe, mas meu ex-namorado nunca quis. Então, decidi terminar a relação e, em janeiro de 2015, entrei sozinha na fila de adoção. Esperava por uma criança de até 2 anos, não importava a etnia, o sexo nem se tinha problemas de saúde, desde que não fossem muito graves. Meu desejo foi atendido no mês passado, quando M. entrou na minha vida. Ele tinha hepatite C (doença que pode causar cirrose já na adolescência), mas foi tratado, e o último exame deu negativo. Ouvi de amigos considerações bem duras. Diziam que ele poderia herdar um comportamento rebelde, viciar-se em drogas ou desenvolver doenças ao longo da vida. Ignorei as advertências e não penso em nada disso. Tenho certeza de que meu amor vai levá-lo a bons caminhos.”
Susto no primeiro encontro. “Quando peguei A. pela primeira vez no colo, ainda no abrigo, em agosto do ano passado, ele regurgitou. As assistentes sociais olharam para mim assustadas. Mas tudo o que eu conseguia fazer era chorar, emocionada por conhecer o meu filho. Nessa hora, disse ao bebê: ‘Fique tranquilo, vou cuidar de você’. No começo, ele era muito quieto, mas hoje é espoleta. Até ensaia algumas palavras em inglês, ensinadas pelo pai.”
Mãe de verdade. “Quando conhecemos os gêmeos, no fim de 2013, G. foi receptivo desde o início, mas L. era arredia. A situação só melhorou quando eles passaram o primeiro fim de semana em casa. A partir de então, L. começou a abrir um sorriso imenso sempre que me via. Segundo a psicóloga que nos atendia, ela mudou ao perceber que teria uma mãe de fato, em quem poderia confiar. Hoje sou separada, mas o pai continua muito presente.”
Começo cercado por desconfiança. “B. demorou a me encarar como pai. Foi um início duro. As assistentes sociais diziam que era porque até 1 ano e 4 meses, quando a adotamos, ela só tinha contato com as mulheres do abrigo e não estava acostumada com a presença masculina. Com minha esposa, a empatia foi imediata. O problema se resolveu após algumas semanas de convivência. Hoje, somos grudados.”