Um dizia: “Sergipe”; o outro respondia: “37”. Na Rua Sergipe, número 37, bairro de Higienópolis, ficava a casa em que os conspiradores montaram seu quartel-general, naquele nervoso sábado, dia 9 de julho de 1932. O endereço foi transformado em senha e contrassenha para as comunicações entre eles. Mensageiros entravam e saíam do local. A ordem era assegurar o controle das forças militares e policiais em São Paulo, bem como dos Correios, da telefônica e de outros serviços. São Paulo, por suas principais lideranças políticas, aliadas a militares dissidentes, declarava-se em insurreição armada contra o regime de Getúlio Vargas, instalado um ano e nove meses antes. Tinha início o episódio conhecido como “Revolução Constitucionalista”, “Contrarrevolução”, “Revolução Paulista”, “Guerra Paulista” ou “Guerra Civil Brasileira”, conforme a perspectiva e a orientação política do observador.
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O início da Revolução de 1932 — outro modo, mais neutro, de nomeá-la — faz oitenta anos neste 9 de julho. O passar dos anos não atenuou a controvérsia que a cerca, a começar pelos múltiplos nomes que lhe atribuem. Foi batizada de “constitucionalista” por seus promotores, e constitucionalista continua para quem a enxerga como insurreição de pura índole democrática e legalista, contra o regime de exceção em vigor desde a derrubada do presidente Washington Luís, em outubro de 1930. “Contrarrevolução” é como a chamaram os homens de Vargas, sugerindo que se tratava de uma reação da oligarquia paulista à Revolução (esta, sim, “revolução” de verdade) de 1930. “Guerra Paulista” foi como a chamou o historiador Hélio Silva, autor da série de livros intitulada “O Ciclo de Vargas”, dando ênfase ao caráter solitário da insurreição de São Paulo. Uma variante é “Revolução Paulista”. Mas, se São Paulo militarmente ficou só, a insatisfação com o regime permeava outros estados, e dobrava-se numa cisão entre os militares. O caráter nacional do desconforto contra o regime reflete-se no título de um dos melhores livros sobre o episódio, “1932 — A Guerra Civil Brasileira”, do brasilianista Stanley Hilton.
Para voltar às origens do movimento, é preciso recuar a um fato ocorrido em 26 de outubro de 1930, num vagão de trem estacionado em Ponta Grossa, Paraná. Getúlio Vargas fazia o passeio da vitória, do Rio Grande ao Rio de Janeiro. Era aclamado por onde passava, e em São Paulo não seria diferente. Quatro dias depois, a cidade lhe ofereceria uma estrondosa recepção. No vagão em Ponta Grossa, no entanto, Getúlio já assinara o decreto que lhe envenenaria a relação com os políticos paulistas — o da nomeação do tenente João Alberto Lins de Barros para interventor no estado. Entre os estados de maior influência, São Paulo recebia o pior tratamento. Em Minas Gerais fora permitido que Olegário Maciel, eleito no quadro do regime anterior, continuasse à frente do governo. No Rio Grande do Sul, o gaúcho da gema Flores da Cunha, ligado às oligarquias locais, fora nomeado interventor.
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João Alberto, ao contrário, era um pernambucano sem vínculos com São Paulo. Pior ainda, sob o ponto de vista das lideranças políticas e econômicas paulistas, era um dos mais destacados “tenentes” — assim com aspas porque nem todos exibiam essa patente e porque nessa época, antes de designar um grau da carreira militar, a palavra identificava o grupo de oficiais jovens que desde 1922, com o levante do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, abalava os alicerces da República. Os “tenentes” representavam o grupo mais radical da coligação de contraditórios interesses que, em 1930, pôs por terra o regime dos homens de casaca e eleições fraudulentas conhecido como “República Velha”. A nomeação de um deles para comandar São Paulo emprestava à palavra “interventor” seu mais pleno e drástico significado.
Logo ao ser apresentado ao Palácio dos Campos Elíseos, a sede do governo paulista, João Alberto mostrou as garras. “Muito rico e muito bonito, mas precisamos transformar todos esses palácios paulistas em quartéis”, comentou. Entre os políticos paulistas, sentiam-se particularmente feridos os integrantes do Partido Democrático, que apoiara a aliança getulista e esperava ser recompensado com o comando do estado. Era natural que o Partido Republicano Paulista, que mandara e desmandara até então, fosse apeado do poder. Menos mau no entanto que o comando se transferisse para a outra parte da elite congregada no Partido Democrático. Ao incômodo do forasteiro que fazia pouco das classes dirigentes locais somava-se o namoro ensaiado por João Alberto com a classe operária e mesmo com o Partido Comunista, ao qual permitiu um comício na Praça da Sé.
Não se veja em João Alberto, porém, e menos ainda no conjunto dos tenentes, um projeto coerente, de teor socialista, para o país. Se com uma mão ele dava força aos sindicatos e estimulava greves, com a outra reprimia-as quando ameaçavam sair do controle. Se a alguns dava a impressão de ser um agente do comunismo, ao embaixador da Itália, Vittorio Cerruti, pareceu, durante uma entrevista particular, afinar-se com o regime então no poder em Roma. “Ele me fez declarações de estilo absolutamente fascista”, relatou o embaixador a seu governo. Naqueles incendiários anos 30, a muita gente boa parecia que o futuro pertencia ao comunismo e/ou ao nazifascismo. A democracia liberal estava morta. O que os “tenentes” tinham em comum era o apreço por um governo forte e centralizado, de preferência livre do incômodo das eleições, características compartilhadas tanto pelo comunismo quanto pelos fascismos.
O “governo provisório”, tal qual se rotulou o regime inaugurado em 1930, era chamado de ditadura pela oposição, e não só em São Paulo. Não parecia que se ofendesse com isso; alguns de seus próprios expoentes a assumiam como tal. “A ditadura atual é um laboratório, cujas experiências poderão depois ser julgadas e aproveitadas na organização definitiva do país”, disse Juarez Távora, outro destacado tenente. O regime era realmente uma ditadura no sentido de que governava sem Congresso, por decretos-lei, e suprimira a autonomia dos estados. Mas estava longe de ser uma ditadura no sentido de comandar e impor sua vontade ao país. Antes, aquela infância da Era Vargas caracterizava-se pela anarquia. Sucediam-se as manifestações, as greves, as articulações de grupos radicais. Para piorar as coisas, um crônico mal brasileiro durante a maior parte do século XX — a agitação nos quartéis — atingia grau de efervescência.
Aquele era um Brasil em que os militares mais destacados se travestiam de chefes políticos. Para aumentar a fervura, os tenentes, além de militantes políticos, eram oficiais de patente inferior que desafiavam os comandantes. A bagunça geral contribuía para que, em São Paulo, os ânimos fossem se exaltando mais e mais. João Alberto, cujas diabruras afinal se haviam tornado incômodas para o próprio governo central, foi substituído em julho de 1931. Mas nem nos ainda mais curtos mandatos de seus sucessores imediatos, o do desembargador aposentado Laudo Camargo (hostilizado pelos tenentes) e o do seguinte, Manuel Rabelo (outro tenente), assentaram-se as coisas.
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O que era inquietação virou febre, em São Paulo, à entrada do ano de 1932. No dia 25 de janeiro, aniversário da cidade, realizou-se um primeiro grande comício, debaixo de chuva, na Praça da Sé. A multidão dirigiu-se em seguida à Rua Boa Vista, sede do jornal “O Estado de S. Paulo”, para ouvir da sacada um dos líderes civis do movimento, Júlio de Mesquita Filho, o diretor do matutino. No dia 17 de fevereiro, o Partido Democrático e o Partido Republicano Paulista uniram-se numa Frente Única Paulista. No dia 24 de fevereiro, realizou-se outro comício, e Mário de Andrade aderiu ao plãoque-plãoque. A expressão é do próprio poeta, que escreveu: “Toda gente da rua se dirigia pro comício e não se via uma cara só. O que se via era aquele ruminante ondular de ombros, e os passos batebatendo plãoque-plãoque plãoque-plãoque no revestimento caro da rua plãoque-plãoque plãoque-plãoque”.
Ao contrário dos colegas poetas Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia, Mário de Andrade não era de esbanjar ufanismo paulista. O fato de se ter deixado contagiar pelo clima reinante indica o grau que a febre havia atingido. No dia 1º de março, Getúlio trocou de novo o interventor. O escolhido era agora o embaixador aposentado Pedro de Toledo, um “civil e paulista”, como exigia a Frente Única. Mas, ao mesmo tempo, ele estipulava que metade do secretariado e o comandante da Força Pública (antigo nome da Polícia Militar) fossem indicados pelos tenentes. A tentativa era de conciliar o inconciliável. Só agravou a situação.
Os dias 22 e 23 de maio marcariam as etapas seguintes na escalada. Em 22, veio a São Paulo o ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, o mais próximo dos companheiros de Getúlio. Sua missão era negociar uma saída para o impasse da formação do secretariado. Aranha teve de movimentar-se às escondidas na cidade, tal a hostilidade contra sua presença. Uma grande manifestação foi realizada na Praça do Patriarca. No dia seguinte, os protestos se repetiram em pontos variados do centro, inclusive diante da sede da Legião Revolucionária, a entidade que congregava os tenentes e seus simpatizantes, na esquina da Rua Barão de Itapetininga com a Praça da República. A tentativa de invasão do local foi repelida a tiros, e caíram mortos quatro jovens manifestantes — Euclides Miragaia, Mário Martins, Dráuzio Marcondes e Antônio Camargo. Agora, havia até cadáveres para jogar na conta do regime. Com seus nomes formou-se uma sigla com a qual seria batizado o movimento de mobilização dos civis para a guerra — MMDC. E à data do morticínio, 23 de maio, deu-se significado tão memorável que veio a nomear uma das principais avenidas de São Paulo.
A missão de Osvaldo Aranha terminou com vitória paulista; o secretariado seria exclusivamente formado pelos políticos da Frente Única. Vitória maior ainda foi a destituição do chefe da Força Pública, Miguel Costa, tenente tão inflamado quanto João Alberto. Naquele mesmo mês, Getúlio já marcara para 3 de maio do ano seguinte eleições para uma assembleia constituinte. Eis que todas as reivindicações paulistas estavam preenchidas: interventor civil e paulista, secretariado formado por políticos locais, Força Pública em mãos confiáveis e convocação de uma Constituinte. Em tese, poderiam ir todos para casa e dormir sossegados, mas havia dois problemas: primeiro, que os políticos paulistas logo lançaram dúvidas sobre a sinceridade do governo em promover eleições; segundo, e o mais importante, que o trem da insurreição já atingira tal velocidade que nada naquele momento conseguiria freá-lo, excetuada a pura e simples deposição do governo federal.
Para a exaltação dos ânimos um novo fator havia se juntado aos precedentes, naquele mesmo dia 23 de maio: a força do rádio. Um grupo de estudantes invadira a Rádio Record, na Praça da República, ali perto de onde se dera a tragédia do MMDC, e exigira a leitura de um manifesto. A emissora aceitou pacificamente a imposição, e fez mais: daí para a frente tornou-se a voz do movimento. A marcha francesa “Paris Belfort” viraria na Record um triunfal fundo musical. Na voz de locutores tornados célebres, como César Ladeira, seriam lidas proclamações dos escritores Guilherme de Almeida e Antônio de Alcântara Machado. A influência do rádio é fenômeno que merece destaque à parte no episódio. Ainda sem completar dez anos de vida em São Paulo, foi pela primeira vez usado como meio de mobilização de massa no Brasil.
Em paralelo às manifestações públicas corria a conspiração contra o governo federal. Ela possuía duas faces, uma civil, outra militar. A mais importante atividade, na face civil, era a articulação dos líderes da Frente Única Paulista — Francisco Morato, Altino Arantes, Valdemar Ferreira e Júlio de Mesquita Filho, entre outros — com políticos de outros estados, em especial Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Em Minas Gerais, o ex-presidente Arthur Bernardes irmanava-se com os paulistas; no Rio Grande do Sul, o mesmo papel era encarnado pelo velho caudilho Borges de Medeiros, que comandara o governo do estado por 25 anos. As perspectivas pareciam promissoras. Se os três estados se levantassem, seria o xeque-mate no regime. Na face militar, os numerosos adversários dos tenentes formavam em tese um contingente mais do que suficiente para sustentar a briga. Envolvidos na conspiração já estavam o general Bertoldo Klinger, comandante das tropas em Mato Grosso, e o coronel Euclides Figueiredo. Entre os oficiais considerados simpatizantes figuravam detentores de importantes postos no Rio de Janeiro, inclusive o chefe do Estado-Maior, Tasso Fragoso.
A articulação nacional do movimento iria se mostrar, no entanto, desastradamente desarticulada. O papel de desastrado-mor coube ao general Bertoldo Klinger, um gaúcho já com extenso passado de lutas, a favor e contra diferentes governos. Em fins de junho, Klinger estava à procura de um pretexto para declarar-se abertamente contra o governo. Dizia aos interlocutores paulistas que com isso precipitaria o levante e levaria consigo 5.000 homens da guarnição mato-grossense que comandava. No dia 28 de junho, na tentativa de aplacar as querelas sem fim do meio militar, Getúlio nomeou um novo ministro da Guerra — o general Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso, oficial já reformado, sem grande projeção no Exército. Klinger encontrou aí o pretexto que procurava. Redigiu no dia 1º de julho uma carta ao novo ministro, em que ao protesto adicionava o insulto. “O Exército quer saber se o ministro resistiria a uma inspeção de saúde, dado o alquebramento fatal que os anos produzem”, escreveu. Acrescentou, sobre as qualidades profissionais do escolhido, que se tratava de “um militar que de militar só tem a lembrança e a pensão”.
Eram tempos de cabeças quentes; mas, pelo menos, que elas se expressassem no momento certo. A manifestação de Klinger era precipitada. Faltavam importantes acertos entre os conspiradores, especialmente na frente gaúcha, que pedia mais tempo para atrair o interventor Flores da Cunha à causa. Conseguiu-se convencer Klinger a segurar a carta por alguns dias, mas não muitos. Em 8 de julho, a carta foi entregue ao ministro. No mesmo dia, Klinger foi destituído do comando das tropas de Mato Grosso. Os conspiradores paulistas não viram saída senão marcar para o dia 9 a deflagração do movimento, mesmo sem a definição de Minas e, principalmente, do Rio Grande, que parecia mais promissora. Flores da Cunha, que balançou durante semanas, acabou por se definir pela lealdade ao governo central. São Paulo partiu sozinho para a luta.
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“Sergipe”, dizia um; “Trinta e sete”, respondia outro. Tudo correu bem, no dia 9 de julho. Os revoltosos tomaram sem resistência as guarnições do Exército em São Paulo. Os comandantes que ainda não haviam aderido o fizeram ao primeiro convite. A Força Pública mantinha-se sob firme controle, e a cidade recebeu a notícia do início da revolução, no dia seguinte, em clima de festa. “A população da Paulicéia, na alvorada radiosa desse domingo, um dos mais belos da estiagem paulista, despertara como se vivesse um conto de fadas”, escreveu Menotti del Picchia. Declaração de guerra recebida como um conto de fadas! Parece sintoma de parafuso solto, mas era mesmo o que ocorria. Explica-se a sensação pela convicção da nobreza da causa, pela sede de heroísmo e, sobretudo, pela certeza da vitória.
Os postos instalados pelo movimento MMDC foram poucos para atender a enxurrada de voluntários que queriam alistar-se para a guerra. Dez mil inscreveram-se nas primeiras 72 horas. Nas semanas seguintes mulheres se engajariam na produção de fardas, a indústria se converteria com rapidez recorde em fabricante de armamentos e a Associação Comercial lançaria com estrondoso êxito a campanha “Dê ouro para o bem de São Paulo”. Na história do Brasil nunca se viu mobilização tamanha para um esforço de guerra. E nunca uma causa mereceu a produção de tantos cartazes, tantas medalhas e tantas outras bugigangas que incitavam as pessoas à luta. Mário de Andrade registra numa crônica que mulheres, vendo homens em idade de combate a perambular pela cidade, distraídos do conflito, lhes diziam: “Vistam saias”. Se não tinham sido contagiados pelo alvoroço nas ruas, pelos cartazes, ou pelo “Paris Belfort” martelado sem trégua pela Record, só podiam ser mariquinhas.
O general Klinger chegou a São Paulo no dia 12. Um cortejo conduziu-o até o Palácio Campos Elíseos, sob aclamação popular. A certa altura ele desceu do automóvel e aboletou-se no cavalo de um dos soldados da escolta. Baixinho, miúdo, careca, oclinhos redondos sobre os olhinhos míopes e bigodão, era mais uma caricatura ambulante do que o tipo que no cinema seria escolhido para a vaga de herói, mas estava gostando do papel. O coronel Euclides Figueiredo já se encontrava em São Paulo. Tinha deixado a família no Rio, inclusive o adolescente João Baptista, que um dia seria presidente da República. Klinger assumiria o comando geral das tropas revolucionárias; Figueiredo seria o comandante das tropas no Vale do Paraíba, a principal frente de combate.
Ao fiasco de ter precipitado o levante, Klinger acrescentava outro, ao chegar a São Paulo sem a tropa que prometera. Mas isso, àquela altura, não parecia importante. Dava-se por certo que a “guerra” consistiria num passeio até o Rio de Janeiro. Tão logo tivessem notícia do levante, os recalcitrantes mineiros e gaúchos adeririam, e arrastariam o resto do Brasil. O coronel Figueiredo avançou pelo Vale do Paraíba, mas não transpôs a divisa com o estado do Rio de Janeiro. Preferiu fortificar-se dentro dos limites paulistas. Imaginou que era o suficiente para atiçar à rebeldia as guarnições do Rio. Foi um erro fatal. Com isso, abriu mão do elemento surpresa.
A guerra desenvolveu-se em três frentes principais e uma secundária. As principais foram a do Vale do Paraíba, junto à divisa com o Rio de Janeiro, a da Mantiqueira, junto à divisa com Minas, e a do Sul, junto à divisa com o Paraná. Os paulistas jogaram na retranca nas três. A secundária se desenvolveu junto à divisa com Mato Grosso, e tinha o objetivo de, via Paraguai e Rio da Prata, tentar contato com o mundo exterior, em busca de reforços em armas e munições, já que os portos paulistas foram desde logo bloqueados pela Marinha.
Aos cálculos equivocados dos comandantes somou-se o despreparo das tropas, e os paulistas acumularam derrotas desde os primeiros dias. Multiplicavam-se as debandadas, diante do avanço do inimigo. Contra esse panorama, os federais contavam não só com a maior parte do Exército, mas com a polícia militar de diversos estados.
É até surpreendente, dada a disparidade de forças, que a guerra tenha durado os 85 dias que durou. Em 2 de outubro, o comandante da Força Pública Paulista, Herculano de Carvalho e Silva, assinou o armistício, em nome dos insurretos. Não existe cálculo confiável de mortos no conflito. Entre os paulistas, seriam de 600 a 800. As cidades paulistas mais atingidas foram as do Vale do Paraíba e as que confrontam com o Paraná, no Sul. Nos dias finais da guerra, Campinas sofreu um bombardeio aéreo em que morreu um menino e algumas pessoas ficaram feridas. São Paulo não conheceu senão dois bombardeios aéreos contra o Campo de Marte.
Em carta a Getúlio, de 18 de julho, o general Góis Monteiro, comandante das forças federais no Vale do Paraíba, apontou o erro dos rebeldes: “O meio mais racional de o inimigo liquidar a questão seria tomar resolutamente a ofensiva, no prazo mais curto”. Em depoimento posterior, o mesmo Góis Monteiro diria que, se as forças rebeldes tivessem avançado no rumo do Rio de Janeiro, poderiam “atingir pelo menos a Vila Militar, em Deodoro, o que seria um passo decisivo para ganhar a partida, não só porque essa investida iria causar pânico e confusão naquele instante crítico, mas ainda porque poderiam contar com a adesão de muitos elementos tacitamente comprometidos e, sobretudo, com a simpatia do povo”. A avaliação diz menos da situação militar do que do estado de espírito do país; Góis Monteiro deixa entrever um regime atravessando uma fase de cai não cai. Uma ação vigorosa, que chegasse ao subúrbio do Rio, onde ficava a Vila Militar, teria a seu ver provocado uma onda de adesões.
Havia uma difusa insatisfação com o regime, refletida em manifestações pró-São Paulo em Belém, Salvador, Porto Alegre e outras partes. No Rio, uma manifestação de estudantes em frente ao Teatro Municipal foi saudada com aplausos nos prédios vizinhos. No Rio Grande, Borges de Medeiros ainda conseguiu juntar uma coluna de 200 homens para a luta. Foi pouco para enfrentar o aparato do interventor Flores da Cunha, mas fatos como esse abrem o leque e conferem ao movimento um caráter nacional geralmente esquecido. Esse aspecto é defendido, a começar pelo título, no livro “1932 — O Brasil Se Revolta”, de José Alfredo Vidigal Pontes.
São Paulo perdeu nas armas, mas ganhou no grito. Proclamou-se vencedor moral quando foi eleita a Constituinte pela qual lutara, em maio de 1933. O argumento é discutível, pois Getúlio já programara a eleição antes de estourar o conflito. Mesmo assim, funciona até hoje como um dos sustentáculos da celebração da Revolução de 1932 como momento de glória na história paulista. São Paulo ganhou em outros aspectos. Em agosto de 1933, Getúlio nomeou Armando de Sales Oliveira interventor no estado. A elite retomava de pleno direito o comando estadual, na pessoa de um de seus mais ilustres membros. Getúlio mostrava-se cheio de dedos com o estado. Os principais chefes da revolução foram deportados, mas um ano depois já eram beneficiados pela anistia. O governo federal honrou os bônus de guerra que o governo paulista emitira durante o conflito, para suprir a carência de numerário.
Caberia até, se não fosse absurdo, que Getúlio agradecesse aos paulistas pela insurreição. Ela o ajudou a livrar-se dos tenentes, que depois do episódio não recuperaram a antiga influência. A máxima de Joaquim Nabuco segundo a qual sem os exaltados é impossível fazer a revolução, mas com eles é impossível governar, fez-se valer em toda a sua verdade durante os anos iniciais do regime inaugurado em 1930. Getúlio ia no vai da valsa, entre pressões diversas e desconexas. Pelo menos de um dos incômodos se livrou, depois de 1932. Em novembro de 1937, viria o golpe com o qual se instauraria a ditadura descarada e que levaria de cambulhada a efêmera Constituição elaborada em 1933/34. Isso já é outra história. Em 1938, no que pode ser considerado um anexo à mesma história, Getúlio veio a São Paulo como convidado de honra para a inauguração da avenida e do túnel batizados de 9 de Julho. Vida que segue.
A UM GIRO DA ALAVANCA, A MATRACA MATRAQUEAVA
Não há museu histórico no estado de São Paulo que não exiba armas, uniformes e capacetes da Revolução de 1932; são nesses lugares tão frequentes quanto estiveram ausentes do campo de batalha. A falta de armas era tão dramática que os paulistas recorreram à matraca — uma engenhoca que produzia som semelhante ao da metralhadora, para iludir o inimigo.
A ILUSÃO DAS MANCHETES
O Memorial 32 — Centro de Estudos José Celestino Bourroul, com sede no centro, disponibiliza ao público a biblioteca, as imagens e os objetos relativos ao evento reunidos pelo falecido engenheiro que dá nome à instituição. A coleção de jornais é um de seus itens. A imprensa paulista, em sua grande maioria, foi também à guerra, o que significou, como é frequente nesses casos, que a causa se sobrepôs à realidade dos fatos. Vendeu-se a ilusão da vitória até as vésperas do desfecho.