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Projeto da XP de deixar capital não é inovador nem ecológico

"A nova sede deve prejudicar principalmente a vida dos colaboradores de salários mais baixos", escreve o arquiteto Anthony Ling

Por Anthony Ling, arquiteto e urbanista
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h06 - Publicado em 19 jun 2020, 06h00
A nova sede da Apple, na Califórnia: preferência pelo automóvel (Jonathan Clark/ Getty Images/Divulgação)
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“Esta é uma obra de ficção.” Assim começa o e-book divulgado pela XP Investimentos com sua visão sobre o futuro do trabalho. Ainda bem. O livro digital ressalta a mudança de todos os seus colaboradores para o trabalho remoto, construindo, em vez de uma sede no principal centro de empregos do país, próximo à Avenida Faria Lima, em São Paulo, um local chamado “Villa XP” no interior do estado. A obra seria construída “nos moldes da Apple”, cuja sede, no Vale do Silício, tem quadras esportivas, centro de eventos, restaurantes e outras amenidades comuns às sedes dos gigantes de tecnologia do Vale.

A XP tenta uma narrativa inovadora e ecológica, criando soluções para “um mundo que mudou”, fugindo da “rotina caótica de uma grande cidade como São Paulo”. Baseado em um modelo ultrapassado de isolamento urbano, a ideia não é nem inovadora nem ecológica. A nova sede deve prejudicar principalmente a vida dos colaboradores de salários mais baixos, além de reforçar a dependência do uso do automóvel. Em 2017, quando a sede da Apple foi inaugurada, a revista Wired já decretava: “Se você se importa com as cidades, o novo campus da Apple é uma merda”.

Em 1933, urbanistas já publicavam a “Carta de Atenas”, com uma visão de futuro trocando densos centros urbanos por áreas suburbanas em meio a espaços verdes. Esse conceito motivou corporações do mundo inteiro a criar sedes suburbanas: prédios transparentes em meio a florestas, acessados pela liberdade trazida pelo automóvel. A tendência continuou com o declínio dos centros urbanos. Nova York, por exemplo, perdeu quase 1 milhão de habitantes entre 1970 e 1980. O mesmo efeito ocorria em São Paulo: uma população de alta renda que buscava áreas ainda mais distantes, como o Morumbi, que atinge seu pico populacional na década de 1990.

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Em 2011, o ícone da inovação, Steve Jobs, fundador e então presidente da Apple, apresentou sua visão para a nova sede da empresa na pequena cidade de Cupertino, no Vale do Silício. Chamado de “Apple Park”, dez anos depois se tornaria inspiração para a Villa XP. O novo espaço se assemelharia a uma nave espacial em meio ao verde e abrigaria todos os 12 000 colaboradores, cada um com a sua vaga de estacionamento. Por mais genial que fosse, Steve Jobs talvez não tenha percebido que uma transformação urbana global estava em curso. Os conceitos de distanciamento de centros urbanos se provaram equivocados e ecologicamente desastrosos: se espraiando em busca de um maior contato com a natureza, manchas urbanas ocuparam vastas áreas verdes periféricas e pavimentaram nossa dependência do automóvel. Deslocamentos se tornaram mais longos, mais custosos e mais poluentes, e o carro passou de símbolo de status e de liberdade a um flagelo da vida urbana.

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A partir do fim da década de 80 a população de Nova York volta a subir. Em São Paulo, a partir dos anos 1990 o deslocamento passa a se tornar inviável, e a população do Morumbi começa a cair drasticamente. Entre 2000 e 2010, uma das áreas que tiveram maior crescimento populacional relativo em São Paulo foi a sua região central. E, enquanto Steve Jobs apresentava o Apple Park, na outra costa americana Janette Sadik-Khan liderava uma transformação urbana em Nova York. Times Square, até então um largo cruzamento para automóveis, se torna um dos espaços públicos para pedestres mais importantes da cidade. No mesmo ano seria publicado O Triunfo da Cidade, por Edward Glaeser, economista da Harvard. Marcando uma nova era do pensamento urbano, Glaeser explica por que as cidades, “nossa maior invenção, nos torna mais ricos, mais inteligentes, mais verdes, mais saudáveis e mais felizes”.

No mundo corporativo a mudança foi rápida. Em 2016, o New York Times reportava “Por que a América corporativa está saindo dos subúrbios em direção à cidade”. Em Chicago, empresas como McDonald’s, Boeing e Kraft Heinz se mudaram dos subúrbios para a região central. O Vale do Silício não escapou da tendência. Em busca de maior praticidade e convívio social no dia a dia, os millennials empregados em companhias como Apple, Facebook e Google, todas sediadas em pequenas cidades do Vale, passaram a procurar apartamentos na densa San Francisco. Uma das primeiras empresas a compreender essa tendência foi o Twitter, que, em 2014, anunciou sua nova sede próxima ao Tenderloin, um dos bairros mais degradados de San Francisco e que hoje já se torna uma das regiões mais atraentes da cidade. O fenômeno é representado no mercado financeiro paulistano pelo banco Santander, que ocupou o antigo “Banespão”, na região central da cidade, com o centro cultural do Farol Santander e um de seus braços digitais, a Pi Investimentos.

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Eclode a pandemia do coronavírus e, assim como um século atrás, aglomerações urbanas passam a ser vilipendiadas, com teorias de que cidades se esvaziariam. Baseada nessa perspectiva, a XP Investimentos anuncia a sua nova visão do futuro do trabalho, que pode ser precipitada, para não dizer equivocada. Um século atrás, H.G. Wells já previa o fim das cidades com o advento do carro e do telefone. Com a expansão da internet no início dos anos 2000, o mesmo discurso voltou à tona, mas cidades não apenas continuaram crescendo como atingiram seu ápice — e lajes de escritórios em endereços como a Avenida Faria Lima, de maior conectividade com os centros de emprego proporcionados por cidades, alcançaram preços recorde. A Villa XP promete uma fuga de tudo isso. Para seus clientes, isso significa que, ao invés de poderem fazer um almoço ou uma reunião rápida nas proximidades de seus outros compromissos, terão de gastar o dia se deslocando até o interior para assistir ao vídeo institucional da empresa no seu Cinema 4D.

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Nesse cenário, a narrativa ecológica da Villa XP também sofre. Na realidade brasileira, a opção do home office está disponível para apenas 20% da população. Para fazer algo como a Villa XP funcionar, serão necessários desde equipes de limpeza e de manutenção até cozinheiros para os restaurantes. Para estes haverá menos oportunidades de transporte para chegar a uma sede isolada no interior. A tendência é global: reportagem recente do New York Times mostra que, em Nova York, a “fuga urbana” representa uma realidade comum apenas para os 5% mais ricos. A distância exigirá o deslocamento de carro (ou, como diz o e-book, de helicóptero), sendo a paisagem rodeada de verde uma distração do verdadeiro custo ambiental da proposta. Embora rodeada de uma paisagem de congestionamento e poluição, as proximidades do Rio Pinheiros ainda podem ser acessadas de trem, de ônibus ou até de patinete ou de bicicleta, já parte da identidade dos faria limers. A Villa XP seria “construída para estimular a convivência entre pessoas”, mas se isola da maior invenção de promover encontros que a humanidade já criou: a cidade.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 24 de junho de 2020, edição nº 2692.

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