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“O AA sempre resistiu ao virtual, é uma ruptura”, conta empresário

No Diário da Quarentena, empresário e membro do Alcoólicos Anônimos conta como tem sido a experiência dos encontros virtuais do grupo

Por A., empresário, 57 anos, em depoimento a Juliene Moretti
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h13 - Publicado em 29 Maio 2020, 06h00

“O alcoólico é muito ansioso. No início da quarentena, fiquei com as ideias embaralhadas e me perguntava o que iria acontecer, e isso aumentava minha ansiedade. A gente aprende no Alcoólicos Anônimos que a vontade de beber é a última fase da recaída. Antes, tem a recaída emocional, que é a mais complicada. Eu tive de trabalhar muito essa parte no começo.

A gente precisou fechar a sala física do nosso grupo, e eu fiquei bem apreensivo. Meu movimento inicial foi ir atrás de uma plataforma on- line para continuarmos nos vendo. É uma ruptura, mas uma experiência interessante. O AA sempre resistiu aos encontros virtuais, porque o contato é essencial. No meu grupo, são cerca de quinze pessoas. Na reunião do AA central, aberta ao público, são cerca de sessenta, e sempre tem quatro, cinco, seis pessoas novas. Fico ainda mais preocupado com os novatos. Beber é um hábito e ir às reuniões físicas é uma mudança importante na rotina. Compartilhamos o passado e como lidamos com o presente.

Pessoalmente, a minha primeira preocupação foi financeira. Tenho uma empresa e precisei passar tudo para home office. Fechar ou não fechar? Tive de fazer reajustes do quadro de colaboradores, o que é muito difícil. Como a minha mulher e a minha filha, de 18 anos, também estão trabalhando e estudando em casa, tivemos problemas de estrutura. Decidi trabalhar no escritório, fico sozinho ali. Toda noite, entro na sala on-line do AA, das 20 às 22 horas. As reuniões são diárias e têm me ajudado a passar por este momento.

O empresário: alerta para quem tem bebido em casa e sentido isso atrapalhar seu dia a dia (Rogério Pallatta/Veja SP)

Se a pessoa tem bebido em casa e isso está prejudicando de alguma forma seu dia a dia, deve tomar cuidado. Se quem está ao redor a alerta sobre algo, é possível que ela tenha um problema. Talvez não seja só uma fase. É preciso procurar ajuda antes de perder tudo, como aconteceu comigo.

Comecei a beber cerveja com 15 anos. Eu me sentia inadequado e fora de sintonia. O primeiro efeito do álcool foi libertador. Aos 18, as pessoas nem queriam mais dividir a conta do bar comigo. Não terminei a faculdade porque passava mais tempo no bar. Ainda assim, cresci. Montei uma empresa, me casei. Só que perdi a resistência e o controle, e a embriaguez me atrapalhou. Foi tudo embora. Minha trajetória: do uísque na Juscelino Kubitschek para um botequim de quinta categoria, com a cachaça mais barata, sem dinheiro. Voltei a morar com os meus pais e só arrumei confusão. Minhas irmãs fizeram uma intervenção e eu fui para uma casa de recuperação. Para ser franco, não foi uma decisão consciente de que eu precisava de ajuda. Era mais para sair daquela situação e pelo medo de morar na rua. Fiquei quatro meses lá. Não é nada legal, e eu prometi para mim mesmo que nunca mais voltaria. Tive meu primeiro contato com o AA ali.

O sonho de todo alcoólico é este: beber como as outras pessoas. Mas a gente não para em uma cervejinha. Com a gente, é como uma vela: ela sempre volta a queimar de onde parou. Saí da recuperação e fui para o fundo do poço de novo. Uma noite, eu e minha mulher recebíamos convidados em casa. Estava embriagado. Ela pegou o talão de cheques e viu que estava vazio. Eu usei as folhas antes, escondido. Tivemos uma discussão e eu fui para a janela. Foi a primeira vez que tive um pensamento suicida. Estava envergonhado. Todo alcoólico acha que vai morrer com uma garrafa nas mãos. Chamaram meu pai, e foi aquela decepção familiar de novo. Na minha mente bagunçada, pensava em virar andarilho, pegar a Dutra e seguir. Sempre fui muito orgulhoso, não ia pedir esmola. Voltei à casa de recuperação por mais quinze dias e, quando saí, abandonado, lembrei das reuniões do AA, que me salvaram. Em junho, completa vinte anos.

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Minha forma de ver o mundo mudou muito. Eu tinha uma vida bem egoísta, era orgulhoso, agressivo, ciumento. Brigava muito no trânsito. Agora, evito entrar em controvérsias desnecessárias. Foi um crescimento, uma reforma íntima. Voltei a namorar minha mulher e ela ficou grávida. Ainda assim, esperou ter mais confiança em mim. Na minha opinião, ela foi muito corajosa. Não sei se eu aceitaria. Alcoolismo é doença e não desvio de caráter. Esse estigma precisa acabar. Estou em constante tratamento e o medo de voltar é para sempre. Hoje tenho a empresa que sempre quis. Na quarentena, minha esposa se distrai com as aulas de ioga e pilates on-line e a minha filha, que está na faculdade, se arrisca na cozinha. Posso ser pai coruja, mas ela está realmente mandando bem. Esses dias fez aquele camarão internacional do Coco Bambu. E eu tenho as reuniões diárias que me deixam muito feliz e são uma boa alternativa à televisão. Para o futuro, não crio expectativas. Levo o preceito do AA e vivo só por hoje. Um dia de cada vez.”

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 3 de junho de 2020, edição nº 2689.

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