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Número de alunos estrangeiros na rede pública cresce 42% na capital

Apesar disso, não há política específica para a adaptação dos alunos, e escolas têm suas próprias iniciativas para acolhê-los

Por Guilherme Queiroz
Atualizado em 6 mar 2020, 15h08 - Publicado em 6 mar 2020, 06h00
Imagem mostra sala de aula da Escola Estadual Eduardo Prado, no Brás
Aula na E.E Eduardo Prado, Brás, antes da pandemia (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Situações como a guerra na Síria, as tragédias naturais no Haiti, os conflitos étnicos do Congo, a crise econômica venezuelana e a política na Bolívia reverberaram na capital paulista e trouxeram para cá famílias que fugiram dessas circunstâncias. Com isso, o número de alunos estrangeiros na rede pública de educação teve um salto. Só de 2016 para cá, o aumento foi de 42% nas escolas estaduais e municipais da cidade: de 12 604 para 17 880 estudantes em 2020, do ensino infantil ao médio, o equivalente à população do bairro do Pari e a irrisório 0,91% dos 1 962 088 matriculados nas duas redes.

Bolivianos, haitianos e venezuelanos lideram entre as carteiras das salas de aula. Apesar da proximidade do espanhol e do francês com o português, o desafio vai além do idioma. “É importante que o aluno se sinta acolhido para ter vontade de se comunicar. Isso é anterior ao domínio da língua”, explica Valdir Barzotto, professor de metodologia do ensino de língua portuguesa na USP.

Foi assim com Zahir, 13, e Zena Al Kallaa, 11. Os irmãos sírios vieram para o Brasil em 2018, fugindo da guerra. “A casa de uma amiga foi atingida por uma bomba e ela perdeu o filho, então decidimos que não dava mais”, explica a mãe, Maha Moussa. O início das aulas na Escola Estadual Adelina Issa Ashcar, no Cambuci, foi “muito difícil”, lembra Zena, com seu português hoje fluente. O trabalho de uma professora, Tania Campos, mudou a situação e, em poucos meses, a pequena começou a compreender o conteúdo dado. “Faço programas específicos para cada aluno”, explica a docente, que se aposentou recentemente. Especialista em alfabetização, ela percorria a escola com a menina e, depois, também com Zahir, ensinando o nome em português dos objetos com o auxílio do tradutor no celular: as crianças falavam inglês, mas Tania não. “O Adelina era até o 5° ano, mas eu ia para lá só para ter aulas com a Tania”, lembra Zahir, que precisou esperar dois meses para conseguir entrar em um colégio da rede pública.

Crianças estrangeiras
Zahir, Maha e Zena: iniciativa de professora ajudou no aprendizado da língua portuguesa (Rogerio Pallata/Veja SP)

Iniciativas como a da professora são formuladas pelas próprias escolas: nem a secretaria estadual nem a municipal estabelecem diretrizes específicas para o ensino da língua aos estrangeiros. “Temos um documento com orientações para matrícula e a recertificação dos alunos internacionais”, explica Laís Modesto, diretora do Centro de Inclusão Educacional da Secretaria Estadual da Educação. Recertificação é um teste que o jovem faz para definir em qual série ele vai ingressar na escola. Mesmo sem estar com a situação regularizada no país, em São Paulo o imigrante tem acesso a todos os serviços públicos com o documento estrangeiro. “Temos um Centro de Referência e Apoio ao Imigrante (Crai, na Bela Vista), que realizou entre 2014 e 2019 mais de 31 000 atendimentos”, explica Claudia Carletto, secretária municipal de Direitos Humanos. O local auxilia principalmente refugiados a tirar dúvidas sobre o funcionamento do estado brasileiro.

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Escolas em Perus, Cangaíba, Sé e Belém concentram a maior parte dos estrangeiros na rede municipal. “O fluxo se intensificou a partir de 2014”, diz Maria Gomes, da E.E. Eduardo Prado, no Brás, que lidera no índice entre as escolas estaduais, com 20% dos matriculados. “Temos alunos tutores, que são estrangeiros veteranos e ajudam na tradução na sala de aula.” Além dos estudantes, os “professores dedicam um dia da semana para esse trabalho”, explica a diretora. No mesmo bairro, outra escola reúne diversidade nas nacionalidades, a E.E. Domingos Sarmiento: 15% das crianças são de fora do país.

Crianças estrangeiras
Abel Tovar e a filha, Annalia: depois de aprender o português, a pequena sonha em conhecer o Aquário de São Paulo (Rogerio Pallata/Veja SP)

É por lá que estuda Annalia Bolívar, de 8 anos. Ela veio da Venezuela no meio do ano passado e vive com o pai em um pequeno cômodo, que divide também com a avó, no Brás. “O doce na escola estava muito caro”, diz a menina, medindo com inocência o tamanho do problema econômico na Venezuela. “Você trabalhava um mês para comprar um dia de comida”, lembra Abel Tovar, o pai, que se vira na capital como ajudante de cozinha e usa 65% do salário para o aluguel. Annalia contou com a ajuda dos professores e de um colega também venezuelano para lidar com o português, aprendido em poucos meses. “Ela traduz as coisas para mim”, orgulha-se Tovar, que chegou ao país um ano antes da filha.

Além da língua, o bullying apareceu como uma barreira para Exaucée Kalambay. A congolesa de 18 anos, que agora estuda na E.E. Milton Cruzeiro, em Itaquera, lidou com problemas desse gênero em outras instituições que frequentou na cidade. “Falavam que eu tinha pé de macaco, tiravam sarro do meu sotaque”, conta Exaucée. “Ela sempre foi alta e vira alvo dos colegas”, explica a mãe, Prudence Kalambay. “Não é só na escola, na rua, na frente de casa, ficam fazendo piada com meus filhos, e muitas vezes são outros negros”, diz Prudence. Exaucée voltou para o colégio neste ano, após interromper os estudos por causa da gravidez em 2019. “No Milton nunca tive problemas, estou ansiosa com os estudos”, afirma ela, que sonha em ser advogada. “Incentivamos o combate à xenofobia e indicamos atividades em grupo, como rodas de conversa, para superar questões desse tipo”, elucida Laís, do Centro de Inclusão. “Debates são o melhor caminho para esses casos”, acredita Barzotto.

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Crianças estrangeiras
Exaucée e Prudence: problemas com bullying (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Alguns dos problemas enfrentados pelos estrangeiros, depois da barreira da língua, são parecidos com os encarados pelos brasileiros. “Escolas sem estrutura, falta de acompanhamento. A dificuldade está no processo de aprendizado das matérias. Pai e mãe se sentem impotentes e muitas vezes não conseguem ajudar”, diz o pastor Márcio Filipe, que dá aulas de português a refugiados no Instituto Base Gênesis, no centro, organização da Igreja Adventista que também oferece gratuitamente reforço escolar. Em 2020, o orçamento definido pelo Legislativo para a educação no município é de 13,8 bilhões de reais, e o estadual, 32,6 bilhões: valores que subiram 7,7% para a secretaria de Bruno Covas, e 1,55% para a de João Doria, comparados com 2019. “Mesmo com poucos recursos a gente sempre se esforça para fazer o melhor”, explica Tania, que usou o próprio plano de internet do celular para ensinar Zena e Zahir a falar português.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 11 de março de 2020, edição nº 2677.

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