Você, uma pessoa alerta, cautelosa, acha que não corre o risco de atropelamento. Ilusão. Paga um convênio médico de 1 500 reais que lhe dá o direito de atendimento rápido nos melhores hospitais da cidade. Isso também pode falhar.
Um afilhado meu deixou o carro no estacionamento do Expo Center Norte e atravessava, na faixa de pedestres, a movimentada rua interna do conjunto, ao lado de um amigo. À distância de uns 50 metros, um sinal de trânsito abriu. Os carros deveriam aproximar-se devagar, esperando as pessoas atravessarem a faixa. Um automóvel avançou em velocidade imprudente e invadiu o espaço das pessoas. Faixa de pedestres nem sempre funciona ? eu sei, tu sabes, ele sabe. Meu afilhado só teve tempo de saltar, bateu o pé no capô do carro, foi carambolado para o teto do veículo, resvalou de cabeça para baixo pela lateral em direção ao chão, bateu no asfalto com mãos e braços protegendo instintivamente a cabeça, mas despedaçando o cotovelo esquerdo: ossos expostos, braço pendurado ao antebraço pelo músculo. A motorista só foi parar uns 100 metros adiante, porque havia na área carros da CET e do Corpo de Bombeiros.
O atropelado, tomado pela dor e desespero, deitado na via pública, cabeça amparada por um desconhecido, pedia aos gritos que o levassem “para o Einstein”. A esposa, avisada por telefone, foi para o hospital, a fim de apressar o envio de uma ambulância. Não pode, ambulância de hospital particular não pega atropelado na rua. O Resgate, dos bombeiros, podia levar.
Leva, mas não para o Einstein ? não é assim que funciona. Só pode levá-lo para um hospital público da região do acidente. A central de vagas hospitalares consegue um em Santana, particular. O atropelado urra de dor, grita impropérios, com o braço preso a uma alça do teto do Resgate. O bombeiro quer que ele se controle, ele grita, tapam-lhe a boca com um chumaço de gaze e ele, sufocado, escolhe calar-se.
No hospital de Santana, começa o atendimento: profilaxia, analgésico, antibiótico, tomografia, raio X. A esposa quer que a cirurgia seja feita no Einstein, pede que o transfiram. Não é assim que funciona. O hospital de Santana não pode assumir essa transferência, ele teria de ser apanhado por um médico do outro hospital numa outra ambulância. O atendimento do plano de saúde informa que não há vaga no Einstein.
Planos de saúde não funcionam. Nós sabemos, vós sabeis, eles sabem. “Ora, por que não fazem a cirurgia em Santana mesmo?” Uma delicada cirurgia ortopédica, com ligamentos rompidos, a vítima correndo o risco de perder o movimento do braço. O Einstein só teria vagas programadas para operados do seu centro cirúrgico. Recorreram a um irmão do atropelado em Belo Horizonte, que conhece um médico do hospital desde os tempos em que eram estudantes em São Paulo, quem sabe ele…
A esposa foi para Santana e o amigo para a delegacia, fazer a queixa. Por que a motorista avançou sobre pedestres na faixa? Teria bebido? (Não foi feito o teste.) Distração? Celular? TPM? Delegacias não funcionam, não apuram essas coisas. Fazem boletins de ocorrência, para duelos de advogados.
Surgiu a vaga no Einstein. O.k., mandem a ambulância, pede a esposa. Não, não é assim que funciona. O convênio médico não paga ambulância. Como não paga? Não faz parte do atendimento? Não, não faz. Ambulância do serviço público? Vai demorar. E o ferido lá, passadas quatro horas, deitado em maca fria de metal, dor sobrepondo-se ao analgésico.
A esposa autoriza ambulância particular, 2 000 reais. O trânsito é lento na sexta-feira chuvosa. O médico aplica uma dose poderosa de morfina. Por que não ligam a sirene, para irem mais rápido? Não pode; agora, sirene só em caso de risco de morte. Sofrimento não conta. A morfina faz efeito, o atropelado relaxa e sorri pela primeira vez. Só foi operado seis horas depois do acidente.