Musicais ganham espaço nos palcos paulistanos
Com a estreia de 'Mamma Mia!', gênero que engatinhava em 2000 mostra força e atrai cada vez mais amantes da arte
A partir de quinta (11), o palco do Teatro Abril, transformado outras vezes em castelos, campos de batalha e em um grande depósito de lixo, será uma paradisíaca ilha grega. Nesse cenário à beira-mar, ensolarado e com tipos trajando roupas leves e despojadas, é ambientado o musical ‘Mamma Mia!’. Criado por Catherine Johnson com base em 23 canções de Benny Andersson e Björn Ulvaeus popularizadas pela banda sueca Abba, o espetáculo lançado em Londres em 1999 faz sucesso por onde passa com sua leveza e alto-astral. Já foi traduzido para catorze idiomas, aplaudido por 42 milhões de pessoas em trinta países e, em 2008, chegou aos cinemas em uma adaptação tendo a atriz Meryl Streep à frente do elenco. Com previsão de permanecer em cartaz pelo menos até o fim do primeiro semestre de 2011, a montagem brasileira reúne 32 atores e é liderada por dois dos principais nomes do teatro musical do país: a atriz Kiara Sasso, de 31 anos, que acumula dezesseis espetáculos no currículo, entre eles ‘A Bela e a Fera’ (2002) e ‘A Noviça Rebelde’ (2008), e o ator Saulo Vasconcelos, de 36 anos, lançado em ‘Les Misérables’ (2001) e consagrado como o protagonista de ‘O Fantasma da Ópera’ (2005).
Para Saulo, que enfrentava duas horas de maquiagem para interpretar o sujeito deformado do espetáculo de Andrew Lloyd Webber ou padecia de calor com o figurino de ‘Cats’, o personagem Sam, de ‘Mamma Mia!’, é um refresco. “Poderia chegar até trinta minutos antes da sessão para vestir a bermuda, a camiseta e calçar os chinelos, mas combinamos com a equipe que estaremos aqui com uma hora de antecedência”, brinca ele, intérprete de um dos três possíveis pais de Sophie, papel da atriz Pati Amoroso. Kiara Sasso penou com o vestido de 20 quilos usado em A ‘Bela e a Fera’, mas agora passa a maior parte do tempo de macacão jeans, sapato baixo e cara limpa, bem ao estilo riponga de Donna Sheridan. “A exigência aqui é outra”, diz ela, referindo-se ao rigor nos números musicais. Sem efeitos especiais mirabolantes nem cenários grandiosos, o encanto vem mesmo de 23 canções como ‘Dancing Queen’, ‘The Winner Takes It All’, ‘Money, Money, Money’ e, claro, ‘Mamma Mia!’, vertidas por Claudio Botelho para o português.
Como a música é a alma do negócio, ter gogó afinado, dança no pé e atuar com desenvoltura torna-se fundamental na luta por um lugar no palco. Para chegar aos 32 nomes finais, 3 000 currículos foram avaliados e 2 000 candidatos, a maioria com experiência prévia e muitos titulados fora do país, passaram por audições em setembro. Sim, o espetáculo ganhou forma em dois meses, como é regra na Broadway. Enquanto se definiam os últimos integrantes do elenco, os músicos se familiarizavam com as partituras, a luz era afinada e os figurinos, confeccionados. Os ensaios diários duraram uma média de dez horas, com uma folga semanal avisada na véspera. “Até uma década atrás, as pessoas reclamavam dos horários e do rigor exigido, mas hoje quem entra em um musical desse porte sabe que a coisa precisa ser assim ou não vai segurar a onda de uma temporada”, afirma o diretor e coreógrafo residente de ‘Mamma Mia!’, Floriano Nogueira, que integrou as equipes de ‘Miss Saigon’, ‘A Bela e a Fera’ e ‘Cats’. “Essa consciência faz com que encontremos nas audições candidatos muito mais bem preparados e sérios que no passado.”
Em novembro de 2000, em um galpão do bairro da Bela Vista, o produtor e diretor Billy Bond penou para recrutar o cast de ‘Les Misérables’, musical que inaugurou o Teatro Abril, cinco meses depois, e deu início a esse ciclo. Raros eram os casos como o das atrizes Sara Sarres, Ester Elias e Alessandra Maestrini, que desde a adolescência estudavam teatro, canto lírico e dança. Até então, ouviam-se cantores de bares noturnos e estudantes universitários com formação erudita. “A gente pegava o candidato que mais se aproximava do personagem e, depois, durante os ensaios, lapidava a interpretação”, lembra Bond, que chamou para os testes de ‘Les Misérables’ atores que haviam participado de ‘Rent’ e ‘O Beijo da Mulher Aranha’, seus espetáculos anteriores, além de alguns que haviam sido reprovados, caso de Saulo Vasconcelos.
Com o sucesso dessas produções, uma nova geração se educou e se empenhou para ingressar no gênero. As famílias enxergam como um investimento pagar aulas de canto e dança. Incentivam, inclusive, os filhos e netos a viajar para Nova York ou Londres e assistir às versões originais lá fora. “Foi minha avó que, durante um almoço, sugeriu que eu desistisse de ser médica para me dedicar plenamente ao palco”, conta Pati Amoroso, de 20 anos, que, depois de fazer no primeiro semestre ‘Bark! Um Latido Musical’, promete despontar em ‘Mamma Mia!’. A internet também aumentou o alcance para pesquisas e, com os vídeos encontrados no YouTube, os interessados podem estudar em cima das performances de astros e estrelas internacionais. “Ao contrário da televisão, onde há diversas outras questões que norteiam as contratações, nos musicais o fundamental é estar preparado e há chance para novatos o tempo todo”, afirma Claudio Botelho, que, ao lado de Charles Möeller, dirigiu ‘O Despertar da Primavera’ e ‘Hair’, recém lançado no Rio de Janeiro, com elenco dominado por atores com menos de 25 anos. “É um mercado muito competitivo, mas generoso, pois ninguém precisa ser famoso para ser um protagonista”, completa Botelho.
Novidade para público e artistas
Se parecia uma tarefa árdua recrutar gente para subir ao palco durante a pré-produção de ‘Les Misérables’, a certeza de lotar a plateia com “uma cópia dos espetáculos lá de fora” também passava longe. O produtor e diretor Billy Bond lembra que, três semanas antes da estreia no Teatro Abril, em 2001, apenas setenta ingressos estavam vendidos, e as filas ganharam forma na Avenida Brigadeiro Luís Antônio somente às vésperas do início da temporada. Com o alívio da casa cheia e a disputa cada vez maior pelas entradas, veio uma decepção: a frieza dos espectadores. Pouco familiarizado com o gênero, o público aplaudia somente no fim da apresentação. Com o passar das semanas, os próprios atores começaram a puxar as palmas da coxia entre um número e outro, mostrando que não era feia a manifestação em cena aberta.
Nos onze meses em que permaneceu em cartaz, a adaptação de Claude-Michel Schönberg e Alain Boublil para o romance de Victor Hugo encantou 350 000 pagantes e começou a mudar a imagem do gênero no Brasil. Mas, só a partir de ‘A Bela e a Fera’, montagem vista por 600 000 pessoas entre junho de 2002 e dezembro de 2003, os atores perceberam o estabelecimento de uma continuidade. “Foi naquele momento que vi que eu poderia me sustentar como atriz de musicais”, diz Kiara Sasso. Também de ‘Mamma Mia!’, o ator e bailarino Cleto Baccic, de 40 anos, nessa época ganhava a vida como comissário de bordo em Los Angeles. Ele nunca abandonou os cursos de canto e dança e, enquanto aguardava um papel de destaque, integrou os elencos de ‘Tieta do Agreste’ ( 2007) e ‘Cats’ (2010), além de empresariar colegas como os atores Sara Sarres e Saulo Vasconcelos. “Passei a fazer uma gestão de carreira, estabelecendo o que cada artista precisa para sua imagem”, afirma Baccic.
Um nome que pode causar surpresa nos créditos da produção é o da atriz Rachel Ripani, de 35 anos. Conhecida pelas peças ‘Closer’ e ‘O Inimigo do Povo’, além da novela ‘Caras & Bocas’, da Rede Globo, ela interpreta a perua Tanya, a melhor amiga da protagonista Donna. “Comecei a estudar canto e dança em 1992 e, quatro anos depois, em Londres, fiz cursos de balé e música”, conta ela, que, para entrar em ‘Mamma Mia!’, abandonou na metade a temporada da comédia ‘Vamos?’, ainda em cartaz no Teatro Imprensa. “Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Optei pelo meu grande sonho.”