As ricas na mira das ricas
Paulistanas de famílias tradicionais se irritam com o programa "Mulheres Ricas", que consideram uma caricatura injusta da elite da cidade
Cena 1: em seu escritório, nos Jardins, a arquiteta Brunete Fraccaroli diz a um funcionário: “Você pede para trazer uma água para a Sissi?”, servindo a bebida em uma taça de vidro à sua cadelinha da raça maltês. Cena 2: em viagem a Buenos Aires, a socialite Val Marchiori faz cara de nojo diante de um típico prato de chorizo: “Não vou comer linguiça. Coisa de pobre!”. Cena 3: a mesma Val, agora no Rio de Janeiro, observa a vista de Copacabana pela janela e insiste que adoraria “jogar Dom Pérignon no povo”, enquanto aponta a garrafa do champanhe para a rua. Cena 4: a joalheira Lydia Sayeg conta que toma banho com água mineral e celebra: “Eu nasci em berço de ouro, literalmente. Ser rico é maravilhoso! É uma bênção!”.
Sucesso de repercussão na internet e dono de bom ibope para os padrões da Band, com picos de 8 pontos, o reality show “Mulheres Ricas” se propõe a retratar um mundo repleto dessas extravagâncias, em que seria normal bebericar espumantes o dia inteiro ou trocar de avião em uma simples tardinha de compras. Em suma, é uma peça em formato pretensamente documental sobre a vida dessas assim chamadas milionárias de São Paulo, onde vivem quatro das cinco participantes. Não faltam, para isso, situações ambientadas em restaurantes estrelados e ruas cheias de grifes, como a Oscar Freire. É tudo teatro, com o mais deslavado exibicionismo das tais “ricas”. Não por acaso, é das esquinas de nossos bairros nobres que partem as críticas mais ferozes às estrelas da atração, em especial pelas cenas de ostentação desmedida.
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Uma das primeiras a se manifestar sobre o tema foi a consultora de etiqueta Claudia Matarazzo, cerimonialista do Palácio dos Bandeirantes. Com um artigo em seu blog, hospedado em VEJA SÃO PAULO, intitulado “Ricas? Não sei onde”, ela disparou: “Sinto-me ultrajada como espectadora, como mulher e como mulher rica. Sim, pois em um país como o nosso alguém que tem casa e carro próprios, um emprego em que ganha o suficiente para pagar as contas, viajar com a família uma vez por ano e comer fora de vez em quando pode ser considerado rico”. Em outro trecho, resumiu: “Esse festival de mau gosto, com aviões particulares e grifes manjadas, é coisa de gente sem imaginação, pobre de espírito e ignorante”.
A empresária Maricy Trussardi, cujo tradicionalíssimo clã inclui dez filhos, 27 netos e vinte bisnetos, afirma ter opinião semelhante à da blogueira. Para ela, as cenas exibidas “celebram o ter e não o ser” e representam “um adultério à vida”, com influência “possivelmente nefasta para garotas que só pensam em se casar com homem rico”. Dona Maricy, como é chamada, legítima representante da mais tradicional sociedade paulista, pergunta indignada: “O objetivo é mostrar que as mulheres são vazias, ocas?”. Ela conta que se surpreendeu com as declarações de Val Marchiori. Em 2010, recorda, a moça era repórter do “Programa Amaury Jr”., da RedeTV!, e a entrevistou na creche Nossa Senhora da Conceição Aparecida, fundada pela matriarca. “Ela havia se mostrado educada, gentil. Durante muitas semanas doou toda a carne que as crianças consumiam”, relata. (A caridade foi encerrada há alguns meses, quando Val se separou do bilionário dono do frigorífico Big Frango.)
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No reality show, porém, Val passa longe da filantropia. Aparece sempre mergulhada em compras e é a que mais fala mal das, digamos, colegas. Dona Maricy lamenta. “Não é bonito fazer pouco do helicóptero do outro”, exemplifica, sobre o episódio em que a loira chama de “apertadinho” o interior da aeronave de um amigo de Narcisa Tamborindeguy, a carioca da trupe. Na ocasião, a famosa moradora de Copacabana, conhecida pelo bordão “Ai, que loucura!”, retribuiu o desaforo à sua maneira: ordenou que o piloto fizesse manobras de gelar a espinha, para desespero da convidada.
As bizarrices são tantas que a pilhadíssima Narcisa, figura folclórica da aristocracia fluminense, acaba por vezes ofuscada pelas demais participantes — menos pela ex-sem-terra Débora Rodrigues, que leva uma vida mais comum e se tornou uma espécie de café com leite do grupo. Nos corredores da São Paulo Fashion Week, na semana passada, a novidade televisiva era um dos principais assuntos. “Soube que a mulher do frango está causando”, comentava Donata Meirelles, casada com o publicitário Nizan Guanaes.
Brunete Fraccaroli não fica muito atrás no ranking das ultrajadas. No episódio mais recente do programa, que vai ao ar às 22h15 de segunda- feira, enalteceu as maravilhas de consumir champanhe enquanto faz compras e, com grande refinamento, chegou a virar a bebida no gargalo, numa das inúmeras sequências movidas a álcool que chegam a lembrar os episódios mais edificantes do “Big Brother Brasil”. “A impressão que fica é que o rico acorda tarde, não se preocupa em trabalhar e bebe o tempo inteiro”, diz a empresária Sandra Bork, uma das que se surpreenderam com as cenas protagonizadas por Brunete, tida como trabalhadora incansável na vida real. “Da forma como é feito, sem mostrar esse outro lado, o programa vira uma bobagem”, conclui.
Na conta de Lydia Sayeg, os instantes de gastança explícita nem são o que há de pior. Seu apego fervoroso por armas de fogo é o que mais repercute. “Me assusta ver a Lydia falando de forma tão simplista sobre matar”, diz a arquiteta Fernanda Marques, a respeito das vezes em que a joalheira grita “que delícia!” ao imaginar que está abatendo um bandido em aulas de tiro, nas quais ressalta que é “neurótica por segurança” ao mesmo tempo que expõe seu patrimônio e conta que gosta de alugar uma Ferrari para o marido dar uma voltinha. “A caricatura que se faz dos paulistanos é uma grande distorção”, aponta Fernanda. “Sou amiga de mulheres extremamente ricas, que vivem de forma discreta, e não alardeando suas posses”, complementa Kika Rivetti, que comanda a grife francesa Longchamp na cidade — e, por bom-senso, vetou a utilização de sua loja no Shopping Cidade Jardim como locação de um capítulo.
Na visão de Kika, como na de quase todas as entrevistadas para esta reportagem, o reality show beira a baixaria. “Achei tudo muito vulgar”, sintetiza ela. Não por acaso, “Mulheres Ricas” teve sua pior audiência até agora (3,3 pontos de média, ante 5, no melhor desempenho) ao concorrer com a noite do BBB em que um confinado foi expulso sob suspeita de abusar sexualmente de outra participante sob o edredom. Chama atenção o fato de o público do programa da Band ser para lá de “qualificado” financeiramente: registra 51,7% de seus espectadores da Grande São Paulo nas classes A e B, em comparação com os 39,3% da média da emissora. Por outro lado, ele é praticamente ignorado pelas classes D e E, que somam 2% do bolo, enquanto a fatia desse segmento na audiência geral da casa é de 13,6%.
Para a cronista Danuza Leão, a coincidência entre a fração que mais assiste às aventuras de Val e sua turma e a que mais as rejeita não acontece por acaso. “As mulheres que se incomodam são as que, de alguma forma, se enxergam no que é exibido”, acredita Danuza, que diz ter visto alguns trechos no YouTube após ouvir sua cabeleireira falar longamente sobre o tema, mas logo perdido o interesse. Na imprensa internacional, o fenômeno é levado a sério, tomado como símbolo de um país que já soma cerca de 145.000 milionários, quase 30.000 deles na capital paulista. A lista de veículos que procuraram as participantes e a Band, aliás, vai do jornal “The New York Times” à emissora árabe Al Jazira.
A boa repercussão era esperada pela Band, que transmite o último dos dez episódios no dia 5 de março. Nos Estados Unidos, onde foi criada sob o título “The Real Housewives” (“As verdadeiras donas de casa”), a série também registra bons índices e é ainda mais controversa, a ponto de ter exibido uma sequência de brigas de um casal participante mesmo sabendo que o marido havia se suicidado após o término das gravações.
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Na edição brasileira, os conflitos estão na troca de veneno entre o elenco. Um dia desses, Narcisa declarou que prefere receber mendigos em seu apartamento a ter Val Marchiori por lá. As rusgas, contudo, não deverão impedir a segunda temporada de ir ao ar. As cinco protagonistas já começam a ser sondadas e, perguntadas, afirmam que “talvez” repitam a experiência. Entre os senões está justamente o paredão a que ficam expostas. Sobre as críticas feitas pela elite paulistana, aliás, as respostas estão na ponta da língua. Val: “Hello, nem dou bola”. Brunete: “Será que essas mulheres não se irritaram porque a carapuça serviu?”. Narcisa: “Eu entendo a preocupação das ricas tradicionais paulistanas, também fico bastante constrangida ao ver como agem as outras participantes”.