Megarregularização de bairro na ZL promete destravar a posse de terras
Região que abriga 9 000 famílias terá escrituras residenciais graças a uma nova lei fundiária
Quando a pernambucana Vilma Oliveira viu pela primeira vez o bairro onde iria morar em São Paulo, em 1993, chorou de tristeza. “O casebre ficava enfiado no meio da lama, cheio de rato. Para chegar, tinha de pular corpo de gente na esquina”, ela relembra, aos 52 anos.
Hoje chamada de União Vila Nova, a região fica junto da Rodovia Ayrton Senna, perto do início da Avenida Jacu-Pêssego, na Zona Leste. Já fez parte do Jardim Pantanal, famoso pelos frequentes alagamentos — atualmente, só um trecho próximo do Itaim Paulista ainda leva esse nome.
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Nas últimas décadas, água, luz, asfalto e saneamento melhoraram a vida na vizinhança, onde vivem 9 000 famílias. Nas próximas semanas, o bairro será o primeiro a se beneficiar de uma nova lei que promete dar escrituras residenciais a milhares de moradores de comunidades carentes de São Paulo, um “luxo” raro nesses territórios.
A norma em questão é a lei municipal 17 734, aprovada em janeiro. Ela regulamentou uma lei federal de 2017 (a 13 465), permitindo que fosse aplicada em São Paulo. Entre outras mudanças, as regras criaram uma categoria “social” nos processos de regularização de terras urbanas, chamada Reurb-S.
Ela permite que regiões de baixa renda sejam normalizadas, do ponto de vista fundiário, com certas facilidades: maior flexibilidade em questões ambientais, menores entraves para comunidades surgidas em invasões de terrenos particulares e nenhum custo para os moradores obterem as escrituras — nem mesmo os impostos e taxas de cartório.
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A União Vila Nova, com 733 000 metros quadrados (metade do Parque Ibirapuera), é a primeira área da cidade onde a lei será aplicada “em bloco”, no bairro todo. “A legislação trouxe a ‘legitimação fundiária’, ou seja, ao final do processo o morador recebe a matrícula do imóvel.
Antes, era diferente: mesmo se uma área grande fosse regularizada, depois cada morador precisava entrar com uma ação de usucapião”, diz Candelária Garcia, superintendente da CDHU, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do estado.
Dentro de dois meses, a CDHU vai mandar à prefeitura o mapa finalizado do novo zoneamento do bairro, último passo de um processo iniciado em 2008. “A previsão é que os documentos sejam aprovados e remetidos ao cartório de registro de imóveis até o fim do ano”, diz Ricardo Ferreira, coordenador de regularização fundiária do município.
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O prazo se refere à primeira fase do projeto na União Vila Nova, que dará escrituras a dois quarteirões do bairro, ou 89 lotes, além de regularizar a ocupação de toda a área. O restante dos títulos deve sair até o fim de 2024.
Até o momento, a União Vila Nova vive uma situação semelhante à da maioria das comunidades paulistanas. As ruas ali não existem formalmente no mapa da prefeitura. Ou seja, não têm CEP nem numeração padronizada — e mesmo o nome delas costuma variar.
“Minha filha comprou umas roupas na internet e a loja entregou em outro imóvel, que tem o mesmo número do nosso. Agora, ninguém sabe onde está a encomenda”, diz Maciel Lima, 47, dono de um dos primeiros bares do bairro (ao lado). A padronização das ruas faz parte da primeira fase do projeto, a ser concluída nas próximas semanas.
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Além disso, nenhum imóvel do bairro (salvo pontualíssimas exceções) tem escritura. “É uma realidade comum em regiões carentes da cidade. Em Paraisópolis, por exemplo, apenas uma quadra tem títulos de propriedade”, diz Ferreira. “O projeto da União Vila Nova servirá de piloto para a regularização de outras grandes áreas”, ele afirma.
São Paulo tem cerca de 8 000 processos de regularização fundiária em curso, o mais abrangente deles em Heliópolis, a maior comunidade carente paulistana, com quase 1 milhão de metros quadrados.
A urbanização e a expectativa dos registros imobiliários fizeram o preço das casas na União Vila Nova disparar. “Quando me mudei para cá, em 2002, comprei um lote por 5 000 reais. Hoje, as casas da rua são vendidas por 150 000 a 180 000”, diz Renita Calisário, 54 (acima). A valorização atraiu alguns problemas.
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Uma quadra do bairro (abaixo e à dir.), onde seria construída uma estrutura de cursos profissionalizantes, foi invadida recentemente. “Isso não vai impedir a regularização da região. Mas, como as invasões vieram após o mapeamento da prefeitura, elas não devem ser contempladas com as escrituras”, explica Ferreira.
Os relatos dos moradores mais antigos, como Renita e Vilma, são parecidos: até o início dos anos 2000, a União Vila Nova era um enorme lamaçal com uns poucos barracos. As famílias compravam caminhões de barro para elevar o terreno e protegê-los das enchentes. As ruas eram tão alagadiças que os caminhões não conseguiam ir até os lotes.
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“A gente buscava o barro na avenida do outro lado do bairro”, diz Josefa Barbosa, 50, que chegou ali em 1994. Os alagamentos praticamente cessaram em 2014, com a vinda do asfalto e do saneamento.
“O bairro foi um modelo de reurbanização. Agora, será modelo de regularização”, diz Flavio Amary, secretário de Habitação do estado. Das 140 000 novas moradias populares prometidas por João Doria (PSDB) no início da atual gestão, só 43 435 serão entregues e outras 31 959 estão em obras.
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Publicado em VEJA São Paulo de 05 de outubro de 2022, edição nº 2809