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Um ano após morte de carroceiro, laudos da perícia são contraditórios

Ricardo Nascimento foi atingido por tiros disparados por PM em Pinheiros; episódio causou comoção na cidade e agente irá a júri popular

Por Adriana Farias
Atualizado em 26 jul 2018, 18h45 - Publicado em 26 jul 2018, 17h57

A morte do carroceiro e morador de rua Ricardo Silva Nascimento, 39, em Pinheiros, pelo policial militar José Marques Madalhano, 25, completou um ano no último dia 12 de julho com o inquérito que investiga o caso ainda sem conclusão por conta de um impasse em dois laudos periciais.

Os documentos que deveriam responder qual era a distância entre a vítima e o policial quando ele disparou os dois tiros, se à queima-roupa ou à longa distância, se contradizem. O curioso é que os documentos foram feitos pelo mesmo perito. O processo tramita no Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) e na Promotoria de Justiça do V Tribunal do Júri.

O laudo necroscópico de 5 de agosto de 2017 feito pelo médico legista Rodrigo Itocazo Rocha com base em um exame complementar da também médica legista Ana Maria do Amaral Antonio diz que há partículas no corpo do carroceiro que sugerem ser de pólvora. “Nota-se a presença de corpos estranhos (…) com morfologia, ora sugestiva de fibras de tecido, ora sugerindo partículas de pólvora. Tal informação sugere que a distância dos disparos pode corresponder a tiro encostado ou à curta distância, sendo improvável possibilidade de disparo à longa distância, conforme designado no laudo anatomopatológico anexo”. O documento a que VEJA SÃO PAULO teve acesso mostra fotos do que seriam os elementos de pólvora e também conclui que os órgãos atingidos pelos dois disparos do policial foram pulmão esquerdo, coração, diafragma e fígado. Dessa forma, Nascimento teve morte instantânea.

Laudo conclui que órgãos atingidos pelos dois disparos do policial foram pulmão esquerdo, coração, diafragma e fígado. Nascimento teve morte instantânea (Adriana Farias/Veja SP)

De posse dessas informações, o promotor do caso, Hidejalma Muccio, solicitou ao DHPP maiores esclarecimentos para saber exatamente qual distância deve ser considerada como mínima e máxima na expressão “tiro encostado ou à curta distância”.

O promotor recebeu como resposta um laudo complementar do próprio médico legista Rodrigo Itocazo Rocha, datado de 11 de maio de 2018, quase dez meses depois do primeiro, em que ele agora diz o contrário. “Não foram descritas zonas de esfumaçamento, zona de tatuagem ou ainda zona de chamuscamento [elementos típicos deixados por pólvora de arma de fogo]. Essas características seriam elementos inequívocos de disparos realizados em distâncias próximas ao corpo, devido aos efeitos que a aproximação dos disparos fazem impregnar no alvo (…). Então, conforme descrito no exame cadavérico, a ausência destas zonas que poderiam indicar proximidade dos dois disparos determinam que os disparos, com base nos elementos presentes, foram feitos à longa distância. Em que pese o fato do corpo ter sido trazido ao IML Centro sem as vestes”.

“Saber se os disparos foram à curta ou à longa distância são importantes porque o autor alega legítima defesa e diz que atirou porque o carroceiro veio para cima dele com um pau [o laudo diz que o objeto de madeira media 75 centímetros]”, diz o promotor Hidejalma Muccio. “Preciso dessa informação clara porque o policial irá a júri popular e as pessoas precisam saber como as coisas se deram para poder julgá-lo”. Diante do impasse, o promotor avalia pedir um terceiro perito para o caso.

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A morte de Nascimento provocou grande comoção na cidade. A missa de sétimo dia ocorreu na Catedral da Sé, região central, com a presença de centenas de pessoas, entre moradores de Pinheiros, moradores de rua, artistas e ativistas dos direitos humanos.

Missa foi celebrada pelo padre Julio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua (Roberto Parizotti/Fotos Públicas/Veja SP)

PIZZARIA X DISCUSSÃO COM MORADORA DE RUA

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O pano de fundo que levou ao encontro do PM e do carroceiro também não estão claros ainda. Há duas versões sendo analisadas no inquérito. Uma delas diz que pessoas em uma pizzaria teriam acionado a polícia porque um morador de rua estaria agressivo e fazendo confusão na Rua Mourato Coelho, próximo ao Supermercado Pão de Açúcar. A outra dá conta de que Madalhano e seu colega PM Augusto Cesar da Silva Liberali estariam patrulhando a rua a pé quando se depararam com o carroceiro discutindo com uma moradora de rua porque ele teria dado bebida alcoólica para uma criança. Os policias intervieram na situação e Nascimento, descontrolado, teria ameaçado os agentes dizendo que voltaria com um pedaço de pau para matá-los. Dois minutos depois, o carroceiro teria retornado com o objeto. No inquérito, Madalhano diz que pegou seu cassetete para se defender, mas como não surtiu efeito, sacou a arma e efetuou os disparos.

A tal moradora de rua não foi identificada e nem qualificada pelos policiais. Depoimentos e testemunhas ouvidas, como seguranças do supermercado e taxistas, dão mais consistência para a versão envolvendo a moradora de rua com a criança para explicar como se deu o encontro do PM com o carroceiro. Essas informações também são importantes para qualificar se a ação foi motivo torpe/fútil.

Para dar continuidade ao processo, a Promotoria também aguarda até agora o croqui do local dos fatos, com as respectivas distâncias acerca das posições físicas da pizzaria, do Pão de Açúcar, e no qual as testemunhas ouvidas viram os disparos contra Nascimento. Procurado, o DHPP limitou-se a informar via Secretaria de Segurança Pública (SSP) que o croqui está em fase de finalização. Sobre a questão dos laudos que se contradizem a SSP acionou a Superintendência da Polícia Técnico-Científica que disse ter encontrado pólvora no corpo da vítima e vai analisar a resposta encaminhada ao promotor.

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“A pergunta que fica é: era necessário atirar? Era um morador de rua sem maiores riscos, com um pedaço de pau pequeno, estavam em dois policiais, ambos tinham cassetete e optaram pelo meio inadequado. O alvo era para matar, não era para afastar o perigo, poderia ter atirado nas pernas”, diz Muccio. Ao que tudo indica, o processo encaminha-se para denúncia por parte do Ministério Público com julgamento pelo plenário do júri.

O inquérito também investiga se o carroceiro teria problemas mentais. Em um boletim de ocorrência de 2009, realizado pelo 14º DP de Pinheiros, o delegado informou ter acionado o SAMU para levar Nascimento a um hospital psiquiátrico em Higienópolis “diante dos sinais visíveis de perturbação mental”.

O padre Julio Lancelotti, da Pastoral do Povo da Rua, e a mãe do carroceiro, Arestides Silva Santana (Ricardo Matsukawa/Veja SP)

ONDE ESTÁ E O QUE FAZ O POLICIAL HOJE?

José Marques Madalhano continua afastado dos trabalhos na rua fazendo serviços administrativos no 23º Batalhão da Polícia Militar, na Zona Oeste. Ele compila relatórios dos resultados das operações policiais e faz atendimentos telefônicos da população. A reportagem procurou Madalhano, mas ele não quis conceder entrevista.

Após a morte de Nascimento, o PM passou por atendimento psicológico e obteve laudo negativo para problemas emocionais ou psíquicos. Ele também frequentou serviços religiosos oferecidos pela corporação.

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Na época da morte de Nascimento, Madalhano tinha acabado de se formar policial. Ele estava há menos de dois meses nas ruas. “Naqueles dias ele estava iniciando processo de estágio, em que o policial vai para rua para ser conhecido pela comunidade, mas nesse período não pode exercer funções operacionais que envolvem um risco maior, como estar na força tática”, explica o major Luis Fernando Guillon Pinto, um dos superiores de Madalhano.

“Converso com ele e verifico uma evolução e um amadurecimento muito grande. Está pensando mais na família, a esposa está grávida de dois meses, e ele quer voltar para as ruas, quer que as coisas se resolvam”, afirma. “Ele não relata arrependimento e diz que faria a mesma coisa, mas não queria esse resultado”, diz. “O carroceiro já não gostava de policiais, ele tinha dezesseis registros de ocorrência de condução a delegacias, um deles de agressão à própria mãe e outros contra policiais civis e militares”.

SEGUNDO INQUÉRITO

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Paralelamente ao inquérito que tramita entre o DHPP e o Ministério Público, há outro que até então estava correndo no 23º Batalhão da Polícia Militar, local onde o próprio soldado trabalha. Nas últimas semanas, a investigação foi transferida para a Corregedoria da PM. Após um ano, esse processo também segue sem conclusão, aguardando laudos periciais. A reportagem não teve acesso ao documento, pois ele continua sob segredo de justiça.

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