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De quadras multifuncionais a usos para imóveis vazios do centro, ideias para revisão do Plano Diretor

O grande desafio é buscar estratégias de planejamento que tragam sustentabilidade social e ambiental, escreve Gustavo Feola, que negocia terrenos

Por Gustavo Feola
29 jan 2021, 01h53

Quando existe previsão para que o Plano Diretor Estratégico (PDE) seja revisado, como deve acontecer em São Paulo em 2021, ficamos na expectativa das possíveis alterações que podem transformar o perfil das regiões e, consequentemente, a dinâmica do município e o nosso modo de viver.

Não sou urbanista, mas um admirador de como as cidades se desenvolvem e se transformam a partir das mais diversas interações. Devido a minha prática profissional, costumo caminhar por todas as ruas, alamedas e esquinas da nossa São Paulo, observando os impactos do seu planejamento urbanístico, os efeitos de anos e anos de evolução ou involução. Se o planejamento compreende ou não as especificidades e propósitos das regiões, isso fica visível.

Acompanho mudanças de Planos Diretores desde o início dos anos 90, quando trabalhava em construtora de origem familiar, estudava engenharia civil e aprendia como funcionavam os estudos técnicos para projetos residenciais e comerciais a partir das famosas contas dos potenciais construtivos e taxas de ocupação.

Na época, contávamos com o Plano Diretor de 1971, não existia o conceito de outorga onerosa e o zoneamento contemplava as antigas e famosas zonas Z2, Z3, Z4 etc. Já atuando como engenheiro civil, acompanhei na prática o Plano Diretor da ex-prefeita Marta Suplicy (2002), que pela primeira vez instituiu a cobrança de outorga onerosa na cidade de São Paulo.

Em 2014, o então prefeito Fernando Haddad aprovou o Plano Diretor vigente, que inseriu o conceito das Zonas de Eixo de Estruturação e Transformação Urbana (ZEU). Em 2016, foi aprovada a Lei de Zoneamento que tratou das premissas de implantação desses eixos, com pagamento também de outorga onerosa e benefícios, como edificar quatro vezes o potencial construtivo.

A ideia de promover moradias perto dos eixos de transporte como metrôs e corredores de ônibus, o conhecido adensamento, é inteligente e moderno para metrópoles como São Paulo, no entanto, na prática, o efeito é inverso, já que a maior parte dos terrenos viáveis para desenvolvimento imobiliário na cidade está localizada justamente nas Zonas de Eixo de Estruturação.

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Por essa razão, os incorporadores priorizam a compra de terrenos ali, o que encarece o preço do lote e, por consequência, o valor final de venda dos apartamentos. Dessa forma, em vez de trazer o público que hoje mora nos extremos da cidade para esses eixos e aproximar o morador do local de trabalho, o movimento está sendo o inverso, ou seja, o fator de atração é substituído pela expulsão.

Esses eixos acabaram se tornando locais quase exclusivos para a classe média alta, como em Moema, Vila Mariana e Pinheiros.

Além disso, a ZEU possui outro problema, a obrigatoriedade da cota-parte máxima de terreno (corresponde à quantidade de unidades habitacionais de acordo com a unidade de área do terreno), que obriga praticamente todos os players do mercado imobiliário a produzir o mesmo tipo de produto: apartamentos compactos, o que restringiu a liberdade de desenvolver a planta que entende ser a mais viável para o local desejado.

As experiências e resultados alcançados pelo mercado imobiliário evidenciam tanto os pontos positivos como os negativos do atual Plano Diretor e revelam os ajustes e alterações que precisam ser realizados — nesse sentido, é necessário redesenhar as diretrizes e parâmetros dos Eixos de Estruturação.

Os parâmetros obrigatórios restringem as possibilidades de produtos e poderiam ser revistos. O valor de outorga onerosa, na grande maioria dos casos, é excessivo e deveria ser redefinido, pois isso tudo encarece o custo do negócio e, consequentemente, o valor do apartamento será mais alto.

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Uma alternativa seria aumentar o parcelamento do pagamento da outorga onerosa, por exemplo, em 36 parcelas (hoje é no máximo em dez vezes), e a outra parte poderia ser paga no Habite-se. Também seria interessante que o valor pago da outorga fosse efetivamente revertido em alguma contrapartida específica na região do futuro empreendimento, identificando a destinação do montante.

Por outro lado, não podemos negar que o Plano Diretor trouxe alguns benefícios para a concretização de empreendimentos econômicos. A isenção de outorga, a possibilidade de potenciais construtivos maiores e a não obrigatoriedade de vagas, entre outros, foram responsáveis por viabilizar a primeira moradia.

Entretanto, o terreno, que, como costumo dizer, é a matéria-prima do mercado imobiliário, continua caro em regiões mais centrais, dificultando uma maior produção desse tipo de empreendimento nessas áreas. Uma ideia para incentivar moradias populares em zoneamento ZEU seria aumentar o coeficiente de aproveitamento e não cobrar nenhuma outorga. Inclusive, maiores benefícios para os empreendimentos econômicos poderiam ser pensados dentro das operações urbanas.

De toda forma, com o estímulo da legislação, tais empreendimentos se tornaram uma possibilidade para incorporadores e construtores, que respondem ao objetivo do plano de trazer moradia própria mais barata e digna, com projetos arquitetônicos que têm surpreendido tanto pela beleza como pela funcionalidade. Os arquitetos estão realizando trabalhos incríveis em terrenos pequenos, principalmente no centro de São Paulo. O arquiteto Isay Weinfeld é prova disso, autor do projeto de um dos terrenos que negociei no centro com área de 750 metros quadrados.

Ainda na linha dos empreendimentos econômicos, em bairros como Vila Olímpia, Barra Funda e Santa Cecília, pode-se comprar um apartamento por meio de um produto chamado HMP (habitação de mercado popular) e, com isso, adquirir imóvel próprio e morar mais próximo ao trabalho. HMP é para famílias com renda igual ou inferior a até dezesseis salários mínimos (17 600 reais).

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Para a população menos favorecida, há o HIS (habitação de interesse social), que alcança as famílias com renda igual ou inferior a seis salários mínimos (6 600 reais). Em bairros como Cambuci, Interlagos, Socorro, Sacomã, Ipiranga e Itaquera, há dezenas de empreendimentos sendo lançados, construídos e entregues nesse perfil, muitos com academia e lazer, opção para conquistar a moradia própria com dignidade e qualidade de vida.

O fato é que só podemos afirmar que um Plano Diretor deu certo após alguns anos. Regiões que imaginávamos atrativas para o comércio tornaram-se vazias, lugares que pensávamos ideais para empreendimentos residenciais de classe média ficaram caros e inviabilizaram a compra.

É importante ter em conta que nossa cidade não se realiza apenas nos bairros centrais ou na parte nobre da Zona Sul. Há dezenas de bairros paulistanos que poderiam ser mais bem aproveitados, muitas regiões que ainda estão horizontalizadas e sem atrativos de serviços e comércio merecem atenção nas futuras revisões ou num próximo Plano Diretor.

Grande parte da cidade está no zoneamento ZM (Zona Mista), com restrições de gabarito de 28 metros e coeficiente de aproveitamento de duas vezes, por exemplo, os bairros de Aricanduva, Sapopemba, São Mateus, Santo Amaro e Vila Andrade. Nos chamados miolos dos bairros, a limitação em relação a gabarito de altura restringe os investimentos do mercado imobiliário.

Incorporadoras e construtoras têm tido dificuldade para encontrar áreas em ZM, o tamanho do terreno tem de ser superior a 2 000 ou 3 000 metros quadrados para fechar a conta. Isso traz obstáculos para formatar um terreno possível para uma incorporação e encarece o produto final, que é o apartamento. Repensar a altura do gabarito para 48 metros, mantendo o coeficiente de aproveitamento, por exemplo, poderia atrair investimentos imobiliários e, consequentemente, maior desenvolvimento para algumas regiões.

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O bairro da Penha, na Zona Leste, onde tenho minhas raízes, é outro exemplo que elucida as limitações do atual Plano Diretor. É notável o pouco desenvolvimento e crescimento da Penha nos últimos Planos Diretores, bem diferente do Tatuapé, seu bairro vizinho, que teve um boom de empreendimentos, supermercados, escolas particulares, diversos negócios e, com certeza, maior possibilidade de empregos.

É certo que o centro do bairro é histórico, com vários edifícios tombados, e deve ser preservado e cuidado, entretanto, outras regiões, como a “franja” do centro, quadras próximas, merecem maior atenção. Não vou entrar no mérito se em alguns bairros houve excesso de lançamentos imobiliários. Tenho como premissa que tudo deve e tem de ser calibrado, mas há exemplos claros de bons resultados na nossa cidade e outros que poderiam ter sido mais bem pensados e executados.

Outro ponto que merece atenção no PDE são os chamados corredores (ZCOR), como a Avenida Brasil. Seria interessante revisar o zoneamento para diversificar a oferta de serviços e comércios e possibilitar um melhor aproveitamento de imóveis que hoje estão subutilizados ou até desocupados, permitindo a aprovação de habitação compartilhada ou a permissão de condomínio de casas.

Não falo em adensamento de toda essa região, mas adequações com bom senso, que favoreçam também a ideia de sustentabilidade. Vejamos o exemplo de Portland, nos Estados Unidos, que aprovou a lei da reposição residencial, autorizando a subdivisão de um imóvel unifamiliar em até quatro escrituras, permitindo a utilização multifamiliar de um único imóvel e otimizando os custos de moradia.

Seria interessante repensar os usos dos imóveis nas zonas de corredores a partir do exemplo de Portland. Permitir locações para estudantes ou pessoas que trabalham durante a semana no centro de São Paulo ou nas regiões da Faria Lima e Paulista e moram em bairros distantes, além de evitar longos descolamentos diários, poderia revitalizar a região.

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Imagem de casas americanas
Portland, cidade americana que autoriza subdivisão de imóvel em até quatro escrituras, e pode ser exemplo para São Paulo (Getty Images/Reprodução)

Questão que também merece atenção são os imóveis antigos, localizados, principalmente, no centro, construções que estão desocupadas e subutilizadas e poderiam servir de moradias populares. Por que não regulamentar uma lei mais clara sobre o retrofit, prevendo mais facilidades e menos burocracias? Tem muito empreendedor que está disposto a pôr energia nesse tipo negócio.

O grande desafio para a revisão do Plano Diretor é, a partir das complexas dinâmicas de nossa realidade urbana, buscar estratégias de planejamento que tragam sustentabilidade social e ambiental para São Paulo, tornando-a mais compacta e viva tal como sugerido pelo arquiteto urbanista inglês Richard Rogers no livro Cidades para um Pequeno Planeta. Para Rogers, “as cidades devem personificar seus habitantes, incentivar o contato cara a cara, condensar e fermentar as atividades humanas e gerar e expressar a cultura local”.

Nessa perspectiva, a implementação de quadras multifuncionais com maiores incentivos para habitação e infraestrutura, além de promover uma vizinhança mais integrada, facilita o investimento de serviços e comércios nos bairros, criando polos de centralidades, como se fossem minicidades, o que favorece a mobilidade e, consequentemente, a ideia de sustentabilidade. A população da região pode usufruir de diversos benefícios sem ter o desgaste do deslocamento de quilômetros e quilômetros. Várias metrópoles, como Nova York, Londres e Barcelona, já utilizam o conceito de cidades compactas.

Nesse contexto, a otimização das fachadas ativas também é um ponto que merece destaque na revisão do Plano Diretor. De maneira bem prática, são espaços no térreo dos empreendimentos que funcionam como comércio. Esse instrumento já constava no Plano Diretor vigente, mas pode ser melhorado no sentido de incentivar e estimular sua utilização para facilitar e promover uma maior vantagem construtiva e diversificar mais o uso da propriedade.

Sou apaixonado por São Paulo e tenho o privilégio, pela minha profissão, de visitar cada canto dessa cidade. Negocio terrenos de padrões econômicos e altos, escuto histórias dos dois lados do balcão, tento compreender as dificuldades e dores de todos os tipos de pessoa e, nessa dinâmica de encontros e desencontros, compreendo que para a construção de uma convivência coletiva sustentável é necessária a prática da alteridade, ou seja, a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Tanto incorporador como o poder público precisam encontrar a sinergia para o desenvolvimento do mercado imobiliário na nossa cidade. Sabemos que ser empreendedor não é tarefa fácil, ser empreendedor imobiliário é ainda mais desafiador, são muitas as inseguranças jurídicas, riscos de aprovação de projeto, burocracia e outros tantos desafios.

Agradar a todos é muito difícil, mas precisamos refletir de forma coletiva e agir de forma mais humana e com bom senso, pois só assim teremos uma São Paulo equilibrada e harmônica.

Imagem do autor
(Arquivo Pessoal/Reprodução)

Gustavo Feola é engenheiro civil, diretor-geral da Gustavo Feola Negócios Imobiliários e autor do livro Vendendo Terrenos, Colecionando Histórias (Editora Laços, 2015).

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Publicado em VEJA São Paulo de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723

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