Herdeiros de famílias tradicionais resgatam sem-teto
Ações de resgate da ONG Arcah são realizadas em regiões como a Cracoândia
Os sobrenomes são sonoros e os rostos conhecidos das colunas sociais e sites. A família de Filipe Sabará, de 31 anos, fornece insumos à Natura, e ele é dono da marca de cosméticos Reload. Fabi Saad, 30, herdeira do Grupo Bandeirantes, possui uma loja virtual de moda e decoração. Alex Seibel, 29, acionista da Duratex, integra o clã que controla a Livraria da Vila. Jovens e descolados, eles têm em comum uma missão: tirar moradores de rua de locais degradados da cidade, como a Cracolândia, e oferecer tratamento de saúde e oficinas profissionais de agricultura a essas pessoas.
O trio é fundador da ONG Associação de Resgate à Cidadania por Amor à Humanidade (Arcah), que acaba de ganhar sede própria: a prefeitura de Botucatu doou um sítio de 11 alqueires no município, a 230 quilômetros da capital. Com inauguração prevista para julho de 2016, os três esperam atender ali cerca de 1 000 pessoas em dez anos. O trabalho de “campo” do grupo acontece em vários pontos da capital e conta com a participação de cinco funcionários e quarenta voluntários. Nas incursões semanais, eles tentam se aproximar da população carente, não apenas para o chamado “resgate” (quando tiram os necessitadosdas ruas), mas também com ações como conversas com psicólogo e outros encaminhamentos, conforme o problema de cada um (documentação e tratamento odontológico, por exemplo).
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Para conseguir esse contato, a equipe se utiliza de diversas estratégias, entre elas a distribuição de hambúrgueres de food trucks como o Luz, Câmera, Burger, para que os sem-teto se aproximem. “Tomamos alguns cuidados, como usar roupa básica, mas nunca tive medo de ir até essas pessoas”, relata Seibel. As experiências são intensas. “Ver uma mulher grávida na Cracolândia foi uma das coisas mais impressionantes que presenciei na vida”, conta Fabi, que vende em seu portal a camiseta oficial da organização, com a frase believe in good people (“Eu acredito em boas pessoas”). “É uma das formas que encontrei de ajudar”, completa.
As peças de roupa, vendidas a 50 reais a unidade, rendem aproximadamente 10 000 reais a cada trinta dias, um terço do custo mensal da instituição. Graças ao excelente networking da turma, Gisele Bündchen posou para foto com a camiseta nas mãos durante uma sessão de autógrafos de sua biografia, no início do mês, na Livraria da Vila.
O bom trânsito com figuras influentes da cidade, claro, é sempre uma ferramenta crucial — especialmente para conseguir dinheiro. Na quinta (12), estava marcado um jantar na Casa Fasano, no Itaim, com 550 convidados. Os convites custaram entre 500 e 2 000 reais. Haveria um leilão de trinta obras de arte doadas por Raquel Arnaud e Marilia Razuk, donas de importantes galerias na capital. Apesar das facilidades dos bons contatos, o empenho individual é fundamental. “Só vou ter vida pessoal quando a sede em Botucatu estiver funcionando”, comenta Sabará.
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Ele é presidente e idealizador da entidade. “Antes, eu levava gente que encontrava na rua para dentro da minha casa.” Em um dos casos, conta, um garoto tirado das calçadas passou várias semanas em sua casa no Morumbi, no espaço de dois anos. “Decidi fazer algo mais concreto para ajudar.”
No instagram da organização, postou recentemente foto ao lado de um homem atendido pelo grupo. “Mais uma noite incrível”, assinalou nos comentários. A inspiração para criar a ONG veio da comunidade terapêutica de San Patrignano, no norte da Itália. Lá, os cerca de 1 300 internos em tratamento recebem auxílio-saúde, moradia e a chance de aprender uma nova profissão. O resultado dessas aulas são produtos como pães, vinhos, bolsas e móveis, que mantêm financeiramente cerca de 50% da instituição.
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Em Botucatu, haverá oficinas de marcenaria e gastronomia e plantação de alimentos orgânicos. “Com 1 milhão de reais, podemos começar a funcionar. Mas buscaremos os 15 milhões para oferecer a melhor estrutura possível”, diz Rodrigo Leite, também voluntário, que atua como diretor executivo da organização. O desafio é grande: hoje, em São Paulo, há cerca de 16 000 indivíduos nas ruas.
Antes da sede própria, a Arcah levava seus “resgatados” (um total aproximado de oitenta, desde 2012) para a Missão Alvorada, situada em Cotia, na Grande São Paulo. Em troca, proviam o local de benesses, como a doação de alimentos, equipes para estruturar a horta e aulas de professores ligados a academias de ginástica (no conjunto, 200 internos foram beneficiados). No primeiro semestre, a parceria foi encerrada.
“Eles queriam assumir o espaço de vez, e eu não concordei”, conta o pastor Jezmiel Felix, coordenador da casa. Sabará não comenta o rompimento, mas deixa nas entrelinhas a impressão de que ele ocorreu devido a problemas de relacionamento com o evangélico. O modelo do atendimento no interior deve ter semelhanças com o da Alvorada, com algumas modificações: o período de internação passaria de um a três anos, por exemplo. A ideia é que cada beneficiado deixe o lugar capacitado para recomeçar em um emprego. Ex-morador de rua auxiliado pela Arcah, Cléber Alves conquistou sua independência e hoje trabalha em uma ONG voltada para o tratamento de dependentes químicos. “Quero auxiliar as pessoas, da mesma forma como fui ajudado”, conta.