Haitiano sobrevivente do terremoto pretende estudar oboé no Brasil
Jean Gerald de 24 anos tem como padrinho um dos maiores oboístas do mundo - no dia em que faltou à aula, sua escola de música se transformou em ruínas
Porto Príncipe, Haiti, 12 de janeiro. Naquele dia, o jovem oboísta Jean Gerald, de 24 anos, decidiu não ir à escola de música, localizada a uma hora de ônibus de sua casa. “Sem nenhum motivo, preferi faltar à aula”, diz Jean. Às 16h50, um terremoto devastador de 7 pontos na escala Richter deixou a cidade sob escombros. A escola de música veio abaixo e Jean Gerald perdeu cinco amigos na tragédia. “Foi a pior situação que vivi”, conta. “Mas minha casa, ainda bem, permaneceu intacta.” Para o rapaz, a catástrofe representou também a interrupção de um sonho. Autodidata na prática do oboé, instrumento de sopro de difícil execução, ele viria ao Brasil poucos dias depois para participar do Festival de Música de Santa Catarina, onde teria a chance de conhecer bons professores e fazer contato com outros oboístas. A passagem, que lhe fora doada, já estava marcada. Por causa da tragédia, porém, Jean ficou incomunicável por semanas. “Não tínhamos notícias dele”, lembra o gaúcho Alex Klein, um dos maiores oboístas do mundo, regente e espécie de padrinho do haitiano.
Foi Klein quem orquestrou toda a vinda de Jean ao país. Há um ano, recebeu um vídeo do jovem tocando e ficou maravilhado. “O som dele é naturalmente bonito”, afirma. “É comum oboístas trabalharem por anos até chegar a um resultado desses.” Contato restabelecido, Jean pôde finalmente vir ao Brasil. Desembarcou em São Paulo em fevereiro. Nesta segunda (29), ele passará por uma audição no Conservatório Dramático e Musical de Tatuí Doutor Carlos de Campos, mantido pelo governo do estado. Confiante, apresentará o Concerto para Oboé, de Telemann, diante de dois avaliadores. “Tenho certeza de que ele vai deslanchar por aqui”, diz Henrique Autran Dourado, diretor executivo do conservatório. Se isso ocorrer, Jean se tornará aluno e terá direito a morar em Tatuí, no alojamento da instituição.
Aos 14 anos, o haitiano começou a se interessar por música na igreja protestante que frequentava. Pouco depois, ingressou na escola de música Holy Trinity School — a mesma que viria a ruir no início do ano. À época, seu instrumento era o saxofone. Só em 2005 conheceu o oboé e, sem nenhum professor especialista, aprendeu a tocar sozinho. Segundo Klein, devido à complexidade do instrumento, é cada vez maior a escassez de bons oboístas. Durante uma visita de músicos americanos ao Haiti, Jean se destacou entre seus colegas. Impressionada com seu talento, a professora universitária Janet Anthony, da Lawrence University, em Wisconsin, o convidou para uma temporada nos Estados Unidos. Ele acumula passagens pela Bradley University, em Illinois, e pela Ohio State University. “E também visitei Harvard e Yale”, orgulha-se.
Kazuo Watanabe
Iniciação musical no Conservatório de Tatuí: noções de ritmo para crianças a partir de 4 anos
Filho do meio entre cinco irmãos, Jean enfrentou a oposição da família quando resolveu ser músico. Terminou o ensino médio em uma escola pública e chegou a ingressar no curso de ciências contábeis. “Desisti para viver do que eu realmente gosto.” No Haiti, costumava dar aulas para crianças, tocava em bandas e apresentava- se em alguns festivais. Simpático, Jean fala francês e inglês, além do crioulo, o dialeto local. Arrisca algumas frases em português. Durante duas semanas, ele ficou hospedado na casa de um amigo, em Pinheiros. Deu canja no Jazz nos Fundos, também em Pinheiros, e esteve até em uma festa na USP. Jean chegou a Tatuí no último dia 12 e conquistou fãs. Está combinando de dar aulas de francês para uma turma de funcionários do conservatório. “Dentro de dois anos, ele terá nível suficiente para se apresentar em boa forma com qualquer orquestra profissional brasileira”, acredita Klein, que se prontificou a vir mensalmente de Curitiba, onde mora, para dar aulas ao pupilo. Quando estiver pronto, Jean Gerald pretende retornar ao Haiti. “Quero fazer alguma coisa para dar a outras pessoas do meu país a chance que estou tendo.”
FÁBRICA DE ARTISTAS – O Conservatório de Tatuí forma músicos profissionais há 56 anos
Divulgação
Orquestra Sinfônica do Conservatório: temporada anual de vinte concertos
Conhecida como uma capital da música, a cidade de Tatuí, distante 135 quilômetros da capital, abriga o Conservatório Dramático e Musical de Tatuí Doutor Carlos de Campos, inaugurado pelo governo estadual em 1954. Hoje, a escola conta com 2 600 alunos — 45 deles estrangeiros, vindos de países como Estados Unidos, França, Chile e Peru. Estudantes de vinte estados brasileiros também deixaram sua terra natal para aprimorar-se no interior paulista. O conservatório oferece cinquenta cursos gratuitos, que duram, em média, seis anos. Praticamente todas as famílias de instrumentos são contempladas: cordas, piano, percussão e sopros (madeiras e metais). Há ainda formação em luteria, canto e coral, regência e artes cênicas, além de aulas de iniciação musical para crianças. “Somos uma grande fábrica de artistas”, afirma o diretor executivo Henrique Autran Dourado. “Nossa verba corresponde a um quinto da do município. É uma grande conquista.”