Golpe amoroso na internet faz surgir novas estratégias de investigação
A modalidade de crime, que cresceu na pandemia, acontece em aplicativos de relacionamento e redes sociais; confira dicas de segurança
Não é de hoje que a internet se tornou terreno fértil para a prática dos mais variados golpes, quase sempre explorando a boa-fé das pessoas para obter dinheiro em nome de supostos amigos e familiares.
Um em especial vem ganhando a atenção dos investigadores: aquele realizado durante namoros pela rede. “Na pandemia, recebemos vários relatos de clientes que começaram relacionamentos virtuais e faziam depósitos significativos para a pessoa, com a promessa de um encontro presencial que nunca se concretizava”, lembra a detetive particular, Sabrina de Cillo, 45.
Notando a necessidade de prevenção contra esse tipo de estelionato, Sabrina idealizou a agência SPC do Amor, com sede em São Caetano do Sul, especializada na investigação de golpes realizados via aplicativos de relacionamento, que tem mais de 240 000 seguidores no Instagram.
“Nós fazemos uma busca das informações disponíveis no perfil do investigado, usando uma ferramenta com dados abertos públicos, e também temos agentes de campo. A partir de um conjunto de estratégias, entendemos se aquela pessoa é real, se os dados do perfil correspondem ao dela, e montamos um relatório”, conta.
A detetive diz que, na maior parte dos casos, trata-se de perfis falsos criados com imagens de inteligência artificial e nomes fictícios. Os golpes costumam seguir o mesmo roteiro. Primeiro, o estelionatário estabelece um vínculo virtual com a vítima enviando mensagens muito carinhosas e sedutoras, de forma constante, e insinua uma vontade do encontro cara a cara.
Depois, com a vítima já envolvida, ele introduz um obstáculo relacionado a um fator econômico, como a compra de uma passagem ou a retirada de visto ou passaporte. Daí, começam os pedidos de depósitos e transferência via Pix para que se consiga realizar o tão esperado encontro.
Foi o que aconteceu com Rita, 65, que criou uma conta no LinkedIn depois de perder o emprego como secretária durante a pandemia. Um dia, ela recebeu uma mensagem de um suposto engenheiro que trabalhava em uma plataforma de petróleo.
“Ele insinuou que procurava alguém para trabalhar com ele. Percebi que o papo estava indo para outro lado e tentei sair, mas ele me mandava muitas mensagens. Eu falei que sou casada e tenho filhos, mas ele escrevia coisas bonitas, que as mulheres gostam de ler. E eu não sou diferente”, relata.
Com o romance virtual esquentando, em pouco mais de um mês começaram os pedidos de ajuda financeira. “Ele disse que precisava de equipamentos e, como trabalhava na plataforma de petróleo, não tinha acesso à conta bancária. Me pediu para fazer vários depósitos em contas de bancos turcos. Chegou a mais de 100 000 dólares.”
Era o dinheiro da venda do apartamento da falecida mãe, que ela guardava para emergências. Só quando a reserva se esgotou foi que Rita parou com as transferências. “Ele me pressionava para pedir dinheiro a amigos e fazer empréstimos. Eu neguei e ele me bloqueou de todas as redes sociais.”
Com vergonha de levar o caso à polícia, ela começou a pesquisar por conta própria e encontrou o Instituto GKScamonline, sediado na capital paulista, que oferece apoio jurídico e psicológico para pessoas que passam por essa experiência.
“No passado, os golpistas buscavam senhoras, viúvas, que moram só. Hoje, eles miram qualquer pessoa, não importa se é solteira ou casada, até porque podem utilizar essas informações para extorquir a vítima”, afirma Glauce Lima, que criou o instituto em 2019.
Segundo levantamento da entidade, que já fez 125 atendimentos até o primeiro semestre deste ano, o perfil das vítimas são mulheres com ensino superior (58%), que não compartilham os casos com familiares e amigos (92%) e acreditam que o dano psicológico é maior que o financeiro (90%).
Além de oferecer consultas com advogados e psicólogos, o Instituto GKScamonline também faz uma investigação contra os golpistas, utilizando uma plataforma de geolocalização.
“Eu aproveito quando a vítima envia comprovante de Pix e crio uma URL correspondente a ele. Na hora que o criminoso clica no link, a ferramenta pede a localização e a leitura da câmera. Eu acabo tendo tudo dele”, conta Glauce, que entregou, em 2022, uma listagem para a Polícia Federal que resultou em prisões de estelionatários nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina. As forças policiais, no entanto, ainda enfrentam muitas dificuldades para combater esse tipo de crime.
O palestrante Kau Mascarenhas vivenciou de perto essa realidade quando precisou denunciar um golpe amoroso na delegacia. Em 2020, ele descobriu que fotos suas estavam sendo utilizadas por golpistas para atrair vítimas nas redes sociais.
“Fiz o boletim de ocorrência, mas o delegado me informou que esse crime se dá em esfera internacional, porque muitos dos criminosos estão fora do Brasil, e que ainda faltam ferramentas para uma investigação desse nível. As autoridades brasileiras não conseguem me ajudar juridicamente, por isso eu exponho a situação por meio de lives, entrevistas e vídeos”, desabafa.
Desde então, Kau recebeu centenas de mensagens de vítimas, em sua maioria, mulheres. “As redes sociais e aplicativos de relacionamento ainda não têm uma ferramenta no sistema de segurança para rastrear imagens sendo utilizadas em mais de um perfil. Eu continuo sendo vítima e já perdi oportunidades profissionais por conta disso”, relata.
Na capital paulista, a Delegacia Antissequestro (DAS) aprimorou a atuação para combater casos que começam no ambiente virtual. “Houve um aumento muito grande de sequestros associados a aplicativos de relacionamento, o que a gente chama de ‘sequestro Pix’. É um fenômeno novo associado à criação da tecnologia de transferência monetária e também à pandemia”, explica o delegado Fabio Nelson.
Em 2022, a DAS registrou 115 ocorrências do tipo, das quais 104 foram esclarecidas, resultando na prisão de 303 pessoas. No ano passado, a maior parte dos sequestros registrados na DAS foi relacionada aos golpes do amor: 53 dos 49, sendo a maioria das vítimas homens (de 25 a 60 anos), geralmente divorciados.
Diante desse cenário, a delegacia realizou um treinamento com o pessoal de suas três divisões, para que tivessem capacidade técnica para atender a todos os tipos de ocorrências — extorsão mediante sequestro, extorsão qualificada e sequestro-relâmpago —, e fizeram um convênio com o Banco Central para fornecimento de informações sobre contas bancárias de forma mais rápida.
“Com essa operação em curso, prendemos 287 sequestradores e tivemos uma queda vertiginosa nos casos. Isso porque tiramos de circulação as lideranças dos esquemas, que são nosso foco. A Justiça criminal também tem respondido com penas duras, e a punibilidade afasta os criminosos desse tipo de delito”, afirma Fabio Nelson.
Uma grande barreira nas investigações, porém, continuam sendo as plataformas onde os crimes acontecem. No que todos os atores envolvidos no combate a essa modalidade de crime concordam é que, para prevenir e trazer justiça às vítimas, é necessário agilidade e integração com o meio tecnológico.
Em junho passado, o Ministério Público de São Paulo e o Tinder firmaram uma parceria para a criação de um canal de informação 24 horas para atender autoridades policiais. Que sirva de exemplo. ■
Publicado em VEJA São Paulo de 5 de julho de 2024, edição nº 2900