Enterramento de fios: entenda por que o problema nunca é resolvido
Fiação subterrânea poderia ter mitigado o problema das chuvas, mas promessas esbarram no custo astronômico
Na noite de sexta-feira (3), ventos de mais de 100 quilômetros por hora varreram a região metropolitana de São Paulo, derrubaram 1 400 árvores, deixaram oito pessoas mortas e 2,1 milhões sem luz — ao menos 100 000 imóveis permaneciam desabastecidos quatro dias após o temporal. Outro efeito da tempestade: prefeitura, empresas e sociedade voltaram a debater o enterramento dos fios da capital, onde 94% da malha ainda utiliza os postes — mas, como acontece sempre que o assunto esquenta, chovem desculpas para adiar a mudança.
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A primeira lei que tentou criar uma São Paulo com cabos subterrâneos foi sancionada pelo então prefeito José Serra (PSDB), em 2005. A norma previa que as empresas que usam os postes teriam de enterrar 250 quilômetros de fiação por ano, o que livraria a capital dos fios em 24 anos. A AES Eletropaulo, distribuidora de energia à época, barrou o plano na Justiça ao alegar que não cabia à prefeitura, mas a órgãos federais, formular diretrizes sobre o tema. A empresa ameaçava triplicar a conta de luz para pagar pelo eventual enterramento, que dizia custar perto de 100 bilhões de reais. Gestões posteriores, como as de Fernando Haddad (PT) e João Doria (PSDB), criaram projetos para impulsionar o enterramento, mas esbarraram nas mesmas resistências e as obras sempre andaram devagar.
O programa em curso, batizado de SP sem Fios, é mais modesto. Acontece só em áreas onde já houve o enterramento da rede elétrica pela Enel, a atual concessionária, e busca que as outras empresas (como as de telecomunicações) enterrem os próprios cabos — mas a gestão municipal ressalva, em nota, que essas companhias “não são obrigadas a enterrá-los”. O projeto tem o objetivo total de eliminar 65,2 quilômetros de fiação até o fim de 2024 — de um total de 43 000 na cidade.
Após o temporal, Ricardo Nunes (MDB) sugeriu que uma mudança ampla poderia demandar a criação de um novo tributo. Nos últimos dois anos, prefeitura e Ministério Público elaboram um projeto para nortear o enterramento dos fios. A proposta em análise determina que um terço dos custos seria pago pelos contribuintes das áreas contempladas e o restante, pelos cofres públicos. O plano, por ora, aponta para um modelo em que associações de moradores manifestariam interesse na mudança. Participantes da iniciativa calculam que um apartamento de 80 metros quadrados pagaria entre 700 e 1 000 reais pelo enterramento. A ideia já teria interessados. “Queremos ser uma das primeiras regiões no projeto”, diz Celia Marcondes, da associação de moradores do Cerqueira César. “O projeto envolveria a requalificação das calçadas”, diz o promotor Silvio Marques. “A mudança teria de ser custeada pelo poder público. Na regra da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), qualquer obra da Enel deve ter o menor custo possível para não impactar a tarifa”, defende Marcio Jardim, da área de planejamento da Enel. “As redes subterrâneas são uma alternativa a ser estudada, mas é preciso garantir a correta alocação dos custos”, diz Sandoval Feitosa, diretor da Aneel.
No início de setembro, a vereadora Cris Monteiro (Novo) protocolou um projeto de lei que obrigaria a prefeitura a elaborar em 180 dias um plano de ordenamento do subsolo para viabilizar o enterramento. “O município precisa definir quem paga o quê”, ela afirma. O projeto está sob análise da Comissão de Constituição e Justiça. Mesmo quando os moradores estão dispostos a ajudar, o ritmo é lento. “Na Vila Olímpia, começamos a planejar o enterramento dos fios em 2002 e o projeto ainda não está concluído”, diz Adalberto Bueno Netto, da Colmeia, entidade que investiu 30 milhões para alargar avenidas da região, permitindo a retirada dos postes. Na Rua Oscar Freire, a associação local eliminou os fios de um trecho de 750 metros da via graças a 8,5 milhões investidos por uma empresa de cartão de crédito, mas a obra, que iria durar seis meses, levou quase dois anos.
“O subterrâneo paulistano tem mapas imprecisos de dutos de água, esgoto e gás. A obra é quase artesanal”, afirma Luiz Henrique Barbosa, presidente da associação brasileira das empresas de telecomunicações (Telcomp). “O enterramento seria, sim, o ‘mundo ideal’. Ele reduziria muito as interrupções como a que aconteceu agora”, completa Paulo Barreto, do Instituto de Engenharia. “Mas tem um custo astronômico”, ele conclui.
Publicado em VEJA São Paulo de 10 de novembro de 2023, edição nº 2867