Não sou super-herói, mas não posso parar, diz padre que cuida de imigrante
Diário dos sem-quarentena: transmissão de missa on-line e aumento de doações na rotina do pároco Paolo Parise, da Missão Paz
“Antes da pandemia, todas as manhãs, vinham cerca de setenta estrangeiros estudar português aqui na Missão Paz. Outras centenas nos procuravam em busca de emprego e realização de cursos, além de auxílio na parte de documentação, que sempre ajudamos a conseguir. E nosso trabalho não para. Passam por aqui anualmente entre 8 000 e 9 000 pessoas vindas de outros países. Nosso espaço é composto da Igreja Nossa Senhora da Paz, da Casa do Migrante, da área de serviços e do centro de ensino. Vamos começar na semana que vem as aulas não presenciais, que vão atingir parte dos nossos alunos. Na saúde, temos seis médicos voluntários, entre clínicos gerais, pediatras e psiquiatras, que atendiam com frequência os imigrantes. Mas agora os agendamentos das consultas estão suspensos. Na casa, há 66 pessoas acolhidas, de dezesseis nacionalidades, que estão em quarentena. A capacidade é de 110 habitantes, mas não podemos receber mais ninguém. Vinte dos abrigados iniciaram o ramadã (mês sagrado para os muçulmanos). Nós nos adaptamos a eles. Aliás, respeitamos profundamente a identidade do outro, incluindo a religiosa. A situação da casa hoje, por causa da pandemia, é nosso grande desafio. Ninguém entra, ninguém sai. Eles não podem procurar trabalho, estudo, nem passear no Parque Ibirapuera, o que gostavam de fazer. Venezuelanos e angolanos são o grupo principal. Muitos vieram para o Brasil em busca de trabalho, para mandar dinheiro à família, mas se viram de uma hora para outra sem poder sair. Falamos a eles dos riscos de contaminação, e dois homens não aceitaram as regras. Foram embora e não puderam mais voltar. Temos de ajudar essas pessoas a administrar a nova rotina. Fazemos sessões de cinema, abrimos a internet para que todos possam se comunicar com os familiares. Na semana passada recebemos voluntários de educação física que vieram, de máscara, dar aulas a eles. Também vieram professores de dança para promover apresentações. Foi uma grande troca de cultura. A casa possui quartos coletivos, com alas masculina e feminina. As famílias estão separadas, sabemos que não é o ideal. Entregamos um projeto à prefeitura para construirmos uma área destinada a elas, mas nosso prédio é tombado e não é tão fácil fazer mudança alguma.
A crise econômica impactou diretamente a situação dos imigrantes. Os mais vulneráveis são os bolivianos, que estão no mundo da costura. Com as lojas fechadas, eles perderam o emprego e não têm como pagar aluguel. Muitos estão sendo explorados para costurar máscaras de tecido. Ganham para isso apenas 15 centavos por peça. Eles pagam a eletricidade e a linha, só recebem o tecido. No fim, não ganham nada. Outro dia atendemos uma mulher boliviana que veio de Guarulhos, com duas filhas, para pedir cesta básica. Além de enfrentar a situação financeira, ela ainda luta contra um câncer. Os refugiados sírios, congoleses e venezuelanos, que lidam com venda de comida, também ficaram sem renda. Eles vêm sempre pedir cestas básicas. No sábado passado (25) distribuímos 350 cestas. Separamos as entregas por nacionalidade.
Por outro lado, as doações aumentaram muito. Vejo depósitos de 20, 30, 50 reais. São pessoas sem posse que se sensibilizam com a situação atual. Empresas, grandes e pequenas, ligam e dizem que vão entregar as doações na portaria. Tem quem faça a compra no mercado e dê nosso endereço como local de recebimento. Recentemente um arquiteto cujo pai se casou com a mãe aqui na Igreja Nossa Senhora da Paz fez uma grande doação de alimentos.
A Missão Paz é ligada à Congregação dos Missionários Scalabrinianos e está presente em mais de trinta países. Aqui no Glicério estamos desde os anos 30 do século passado. No início, o projeto era voltado apenas para os italianos, mas ao longo das décadas seus serviços foram se modificando. Do ponto de vista religioso, a principal mudança nas últimas semanas foi na realização das missas. Estamos transmitindo-as pelo Facebook, e não há público presente. Uma delas é celebrada em italiano. Colegas nossos da Itália mandaram nomes de pessoas que morreram em Roma, Gênova, entre outras cidades. Sou italiano e cheguei ao Brasil em 1992. Fui e voltei mais duas vezes e estou aqui de forma definitiva desde 2010. Nas redes sociais, tem muita gente que critica nosso trabalho com estrangeiros. Dizem que deveríamos ajudar brasileiros. Mas ajudamos a todos. Eu não atuo sozinho. São 100 voluntários, 36 funcionários, quinze estagiários e dois colegas padres. Não sou um super-herói, tem uma grande equipe trabalhando em conjunto.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 6 de maio de 2020, edição nº 2685.