Gerar uma vida na pandemia dá força e medo, diz Titi Müller
Diário da quarentena: a apresentadora e o marido, Tomas Bertoni, contam sobre a espera por Benjamin, previsto para nascer em junho
No meio de uma pandemia, quando o mundo está transpirando morte, gerar uma vida é ambivalente: dá muita força, mas também muito medo. Nos nós colocamos em quarentena antes do decreto oficial. Ninguém põe o pé para dentro da nossa casa e só saímos para o que é inadiável, como alguns exames do pré-natal do Benjamin, que deve nascer na segunda quinzena de junho. Por causa da gravidez, levamos a sério os riscos antes mesmo de as fichas começarem a cair por aqui. Eu, Titi, avisei ao Multishow em janeiro que achava que não poderia continuar pegando a ponte aérea para apresentar os programas. Parecia exagero naquela hora, mas aconteceu, e hoje estou gravando no sofá de casa. Tínhamos acabado de mudar de apartamento. Nesse momento de preparar bem o ninho, querer arrumar tudo, entramos em um esquema muito de time para a resolução de problemas. Fomos nos apropriando do nosso canto e nos sentindo até um pouco bobos: como era possível ter vivido de delivery por tantos anos? A gente nunca tinha feito feijão. Nossa consciência está indo para outro lugar. Queria poder estar desfilando minha barriga pela rua, mas não vai rolar. Estava planejando neste último trimestre passar o tempo escolhendo peça por peça do enxoval. Compramos coisas pela internet que, com os atrasos na entrega, talvez nem cheguem a tempo. Fazer chá de fralda por videoconferência? Não faz sentido. Queríamos tantas coisas, mas já entendemos que o Benja vai precisar mesmo é da gente aqui, isso é o importante.
Independentemente dos privilégios que cada um tem, o mundo de consumismo e egoísmo de antes não estava massa para ninguém. O mundo é o que a gente inventa coletivamente. Vamos passar por anos difíceis, mas acreditamos que depois dessa sacudida as próximas gerações vão ter bons anos. Precisamos de otimismo para dar conta de uma gestação neste momento. A primeira semana de quarentena foi a mais radical de todas para a ansiedade. Estava com medo de termos desabastecimento, mas também não queria entrar na babaquice de estocar e faltar para os outros. Comi três caixas de chocolate. Chegamos a montar uma equipe para fazer parto domiciliar. A cada semana mudavam as orientações dos hospitais, e estávamos receosos. Mas agora, por causa da diabetes gestacional, nada muito grave, nossa médica disse que é mais seguro fazer o parto na maternidade. Nunca tínhamos ficado tanto tempo juntos, éramos muito voltados para o externo. Se não houvesse essa desgraceira no mundo, se a gente não sofresse por todas as pessoas em situação de vulnerabilidade, estaríamos só nos curtindo. No puerpério, quando não poderei sair, ninguém também estará saindo. Mas nossa rede de apoio não estará lá, pelo menos não do jeito que tínhamos imaginado. Talvez os tios e os avós do Benjamin só possam conhecê-lo depois de algumas semanas, não sabemos.
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Recentemente, compramos um terreno no interior de São Paulo junto com alguns amigos. Aquela história de ‘fujam para as colinas’ não ficou para o futuro, é para agora. Retirar-se dos grandes centros urbanos está se desenhando como uma alternativa para uma vida mais leve. Vamos construir nossa minicomunidade de amor. Queremos ter a própria horta, criar galinhas, apresentar ao nosso filho o que é viver com espaço, pondo a mão na terra, vendo os passarinhos soltos. Não está fechando essa conta de viver em lugares fechados, fazendo academia no ar condicionado, tomando melatonina para dormir ou remédio quando a ansiedade aumenta. As coisas precisavam mudar. Tudo que eu, Tomas, construí na minha carreira, com a banda Scalene e também o Festival CoMA, envolve aglomerar pessoas. E agora? Junto com gerar um filho e mudar a vida pessoal, estou gestando novos caminhos na carreira. Quero um estúdio em casa, um espaço legal para a Titi escrever. Estou viciado em futurologia. Na próxima pandemia, porque haverá outras, e até piores, quero estar preparado. Quero colaborar para que mais consciência coletiva seja atingida.
Agora estamos focados em ajudar amigos que estão preparando refeições para as pessoas na Cracolândia, agindo até onde nossos braços alcançam com a @streetstoredf, mobilizando-nos para estender a mão aos profissionais que perderam suas fontes de renda, como os carregadores de instrumentos dos shows. As pessoas estão despertando para a solidariedade. No fim, tem a ver com o próprio instinto de sobrevivência ajudar o outro. Há coisas que dá para esperar, há coisas que não dá para esperar. O bebê não espera.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 29 de abril de 2020, edição nº 2684.
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