“Delegacia só registra casos graves”, afirma vítima de violência doméstica
Durante quarentena, unidade de Delegacia da Mulher em São Paulo recusou fazer um boletim de ocorrência, segundo relato da vítima
Se ter o direito à Justiça negado leva a uma sensação de impotência, tente imaginar o que sentiu Joana (nome fictício), de 40 anos, vítima de violência doméstica. “Eu havia sido ameaçada de morte e ouvi do escrivão que, por causa da pandemia de coronavírus, estavam registrando apenas casos graves, flagrantes”, conta ela. A recusa em registrar o boletim de ocorrência, segundo ela, aconteceu na 4ª Delegacia da Mulher, na Freguesia do Ó, Zona Norte da capital paulista.
“Ele não quis me atender. Disse que, por ordens do governo, seria somente flagrantes ou algo urgente. Eu falei que da próxima vez eu estaria morta, e ele riu”, afirma Joana. De acordo com a vítima, o escrivão também se negou a fazer o registro de outra mulher, uma senhora, agredida pelo marido.
Foi a primeira vez que Joana conseguiu superar o medo para denunciar o agressor. Há duas décadas, diz ela, sofre violência verbal e física de um familiar. “Não sei como cheguei até aqui. Estou tão exausta, tão cansada… Minha casa está toda quebrada por causa dele”, desabafa.
No último dia 19 de março, perto da hora do almoço, ela sentiu que a ameaça de morte poderia se concretizar. “Saí de casa com a minha bolsa, disposta a nunca mais passar por isso. E aí o escrivão disse que não ia registrar. Saí de lá pensando que era por isso que tantas mulheres morrem. Dizem para a gente denunciar para quê?” Graças a um amigo, ela não desistiu.
Em plena pandemia mundial provocada pelo coronavírus e com restrições de deslocamento decretadas pelo governo, Joana precisou atravessar a cidade para conseguir registrar o boletim. Após a negativa na delegacia na Zona Norte, ela se dirigiu à Casa da Mulher Brasileira, no Cambuci, Zona Sul.
A reportagem recebeu outro relato, também da cidade de São Paulo, de um terceiro caso não registrado. Quando a polícia chegou, a mulher já havia sido espancada pelo marido, que não foi levado para a delegacia.
“É importante que a gente se coloque no lugar dessa mulher. Não falo sobre um caso específico, mas sobre todos. Imagine cumprir a quarentena no mesmo espaço físico que o agressor. Essa é sim uma situação emergencial, sempre”, diz a juíza Teresa Tereza Cristina Cabral Santana, da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp). Na avaliação dela, nenhuma mulher pode ter o direito ao registro de boletim de ocorrência por violência negado.
Coordenadora das Delegacias de Defesa da Mulher, Jamila Ferrari afirma que a atitude do escrivão é “inadmissível”. Na última terça, dia 17, dois dias antes de Joana ter o registro negado, uma portaria publicada do Diário Oficial reafirmava que todas as ocorrências deveriam ser registradas mesmo com a quarentena imposta pelos risco de contágio do coronavírus. “Nós trabalhamos para todas as vítimas. Não sou eu quem decide se vou ou não atender. Eu, como policial, vou atender todo mundo. Se essas duas pessoas foram, por algum motivo, chutadas da delegacia, precisamos investigar”, afirma.
A escalada do Covid-19, nome da doença provocada pelo vírus, impôs à segurança pública dois grandes desafios, na avaliação de Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A primeira é sobre o sistema carcerário. A segunda, diz respeito ao aumento de casos de violência doméstica.
Na China, onde a pandemia começou, houve aumento nos casos. Situações de violência de gênero na cidade de São Paulo continuam crescendo nos últimos anos. Feminicídios aumentaram 167% e violência contra a mulher, 51%, entre 2018 e 2019, segundo o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo.
Casos de estupro e violência doméstica também cresceram. “Se tem que fazer atendimento on-line para algum tipo de crime, que seja o de furto. Para violência doméstica, não tem a menor desculpa”, ressalta Samira.
As equipes do Ministério Público estão trabalhando em regime de plantão. “Estamos trabalhando com urgências em todas as áreas. É uma situação peculiar, não é recorte de gênero. O que não significa deixar vítimas desprotegidas”, afirma a promotora Gabriela Manssur.
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